1 Uns certos profundíssimos filólogos negam-nos, a nós brasileiros, o direito de legislar sobre a
língua que falamos. Parece que os cânones desse idioma ficaram de uma vez decretados em algum
concílio celebrado aí pelo século XV.
4 Esses cânones só têm o direito de infringi-los quem nasce da outra banda, e goza a fortuna de
escrever nas ribas históricas do Tejo e Douro ou nos amenos prados do Lima e do Mondego.
6 Nós, os brasileiros, apesar de orçarmos já por mais de dez milhões de habitantes, havemos de
receber a senha de nossos irmãos, que não passam de um terço daquele algarismo.
8 Nossa imaginação americana, por força terá de acomodar-se aos moldes europeus, sem que lhe
seja permitido revestir suas formas originais.
10 Sem nos emaranharmos agora em abstrusas investigações filológicas, podemos afirmar que é este
o caso em que a realidade insurge-se contra a teoria. O fato existe, como há poucos dias escreveu o
meu distinto colega em uma apreciação por demais benévola.
13 É vã, senão ridícula, a pretensão de o aniquilar. Não se junge a possante individualidade de um
povo jovem a expandir-se ao influxo da civilização, com as teias de umas regrinhas mofentas.
15 Desde a primeira ocupação que os povoadores do Brasil, e após eles seus descendentes, estão
criando por todo este vasto império um vocabulário novo, à proporção das necessidades de sua vida
americana, tão outra da vida européia.
18 Nós, os escritores nacionais, se quisermos ser entendidos de nosso povo, havemos de falar-lhe em
sua língua, com os termos ou locuções que ele entende, e que lhe traduzem os usos e sentimentos.
20 Não é somente no vocabulário, mas também na sintaxe da língua, que o nosso povo exerce o seu
inauferível direito de imprimir o cunho de sua individualidade, abrasileirando o instrumento das idéias.
22 Entre vários exemplos recordo-me agora principalmente de um muito para notar.
Falei-lhe há pouco da excentricidade de certos aumentativos. Usa-se no Ceará um gracioso e
especial diminutivo, que talvez seja empregado em outras províncias; mas com certeza se há de
generalizar, apenas se vulgarize.
26 Não permite certamente a rotina etimológica aplicar o diminutivo ao verbo. Pois em minha
província o povo teve a lembrança de sujeitar o particípio presente a esta fórmula gramatical, e criou
de tal sorte uma expressão cheia de encanto.
29 A mãe diz do filho que acalentou ao colo: "Está dormindinho". Que riqueza de expressão nesta
frase tão simples e concisa! O mimo e ternura do afeto materno, a delicadeza da criança e sutileza do
seu sono de passarinho, até o receio de acordá-la com uma palavra menos doce; tudo aí está nesse
diminutivo verbal.
33 Entretanto, meu ilustre colega, suponha que em algum romance eu empregasse aquele idiotismo
a meu ver mais elegante do que muita roupa velha com que os puristas repimpam suas idéias.
35 Não faltariam, como de outras vezes tem acontecido, críticos de orelha, que, depois de medido o
livro pela sua bitola, escrevessem com importância magistral: "Este sujeito não sabe gramática". E têm
razão; gramática para eles é a artinha que aprenderam na escola, ou por outra, uma meia dúzia de
regras que se afogam nas exceções.
José de Alencar. "O Nosso Cancioneiro" In: Obra Completa. v. 4. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1960, pp. 965-966.
3.1) O diminutivo pode ser empregado com valores distintos daquele geralmente considerado mais básico, qual seja, o de diminuição de tamanho. É isso o que acontece com o diminutivo em "dormindinho", que, como nos explica José de Alencar, indica ternura e afeto. Busque no texto outro substantivo em que o diminutivo seja usado com valor diferente daquele tido como básico e explique esse valor.
3.2) Os pronomes sublinhados nas frases abaixo são normalmente classificados nas gramáticas do português como objetos indiretos. É comum, em tais gramáticas, observar-se que os objetos indiretos podem exprimir diferentes valores. Transcreva duas orações do Texto I em que o objeto indireto seja representado por um pronome e tenha um valor que corresponda respectivamente a:
a) Jorge me entregou o envelope antes de sair. (objeto indireto exprimindo o beneficiário ou destinatário da ação)
b) Penteou-lhe os cabelos e saiu do quarto. (objeto indireto exprimindo o possuidor de algo)