Questão
Simulado UNESP
2020
1ª Fase
Ada-Pai-Homens-foi1017b2079174
Adão, Pai dos Homens, foi criado no dia 28 de Outubro, às duas horas da tarde... Assim o afirma, com majestade, nos seus "Annales Veteris et Novi Testamenti", o muito douto e muito ilustre Usserius, bispo de Meath, arcebisp de Armagh, e chanceler-mor da Séde São Patrício. 

A Terra existia desde que a Luz se fizera, a 23, na manhã de todas as manhãs. Mas já não era essa Terra primordial, parda e mole, ensopada em águas barrentas, abafada numa névoa densa, erguendo, aqui e além, rígidos troncos de uma só folha e de um só rebento, muito solitária, muito silenciosa, com uma vida toda escondida, apenas surdamente revelada pelo remexer de bichos obscuros, gelatinosos, sem cor e quase sem forma, crescendo no fundo dos lodos. Não! Agora, durante os dias genesíacos de 26 e 27, toda ela se completara, se abastecera e se enfeitara, para acolher condignamente o Predestinado que vinha. No dia 28 já apareceu perfeita, perfecta, com as provisões e alfaias que a Bíblia enumera, as ervas verdes de espiga madura, as árvores próvidas do fruto entre a flor, todos os peixes nadando nos mares resplandecentes, todas as aves voando pelos ares aclarados, todos os animais pastando sobre as colinas viçosas, e os regatos regando, e —o fogo armazenado no seio da pedra, e o cristal, e o ónix, e o ouro muito bom do país de Hevilath...

Nesses tempos, meus amigos, o Sol ainda girava em torno da Terra. Ela era moça e formosa e preferida de Deus. Ele ainda se não submetera à imobilidade augusta que lhe impôs mais tarde, entre amuados suspiros da Igreja, mestre Galileu, estendendo um dedo do fundo do seu pomar, rente aos muros do Convento de São Mateus de Florença. E o Sol, amorosamente, corria em volta da Terra, como o noivo dos "Cantares" —que, nos lascivos dias da ilusão, sobre o outeiro de mirra, sem descanso e pulando mais levemente que os gamos de Galaad, circundava a bem-amada, a cobria como fulgor dos seus olhos, coroado de sal-gema, a faiscar de fecunda impaciência. Ora desde essa alvorada do dia 28,segundo o cálculo majestático de Usserius, o Sol, muito novo, sem sardas, sem rugas, sem falhas na sua cabeceira flamente, envolvera a Terra, durante oito horas, numa contínua e insaciada carícia de calor e de luz. Quando a oitava hora cintilou e fugiu, uma emoção confusa, feita de medo e feita de glória, perpassou por toda a Criação, agitando num frémito as relvas e as frondes, arrepiando o pêlo das feras, empolando o dorso dos montes, apressando o borbulhar das nascentes, arrancando dos pórfiros um brilho mais vivo... Então, numa floresta muito cerrada e muito tenebrosa, certo Ser, desprendendo lentamente a garra do galho de árvore onde se empoleirara toda essa manhã de longos séculos, escorregou pelo tronco comido de hera, pousou as duas patas no solo que o musgo afofava, sobre as duas patas se firmou com esforçada energia, e ficou erecto, e alargou os braços livres, e lançou um passo forte, e sentiu a sua dissemelhança da animalidade, e concebeu o deslumbrado pensamento de que era, e verdadeiramente foi! Deus, que o amparara, nesse instante o criou. E vivo, da vida superior, descido da inconsciência da árvore, Adão caminhou para o Paraíso. 

Era medonho. Um pêlo crespo e luzidio cobria todo o seu grosso, maciço corpo, rareando apenas em torno dos cotovelos, dos joelhos rudes, onde o couro aparecia curtido e da cor de cobre fosco. Do achatado, fugidio crânio, vincado de rugas, rompia uma guedelha rala e ruiva, tufando sobre as orelhas agudas. Entre as rombas queixadas, na fenda enorme dos beiços trombudos, estirados em focinho, as presas reluziam, afiadas rijamente para rasgar a febra e esmigalhar o osso. E sob as arcadas sombriamente fundas, que um felpo hirsuto orlava como um silvado orla o arco de uma caverna, os olhos redondos, de um amarelo de âmbar, sem cessar se moviam, tremiam, esgazeados de inquietação e de espanto... Não, não era belo, nosso Pai venerável, nessa tarde de Outono, quando Jeová o ajudou com carinho a descer da sua árvore! E todavia, nesses olhos redondos, de fino âmbar, mesmo através do tremor e do espanto, rebrilhava uma superior beleza —a Energia Inteligente que o ia tropegamente levando, sobre as pernas arqueadas, para fora da mata onde passara a sua manhã de longos séculos a pular e a guinchar por cima dos ramos altos. 

Mas (se os compêndios de antropologia nos não iludem) os primeiros passos humanos de Adão não foram logo atirados, com alacridade e confiança, para o destino que o esperava entre os quatro rios do Éden. Entorpecido, envolvido pelas influências da floresta, ainda despega com custo a pata de entre o folhoso chão de fetos e begónias, e gostosamente se roça pelos pesados cachos de flores que lhe orvalham o pêlo, e acaricia as longas barbas de líquen branco pendentes dos troncos de roble e de teca, onde gozara as doçuras da irresponsabilidade. Nas ramagens que tão generosamente, através tão longas idades, o nutriram e o embalaram, ainda colhe as bagas sumarentas, os rebentões mais tenros. Para transpor os regatos, que por todo o bosque reluzem e sussurram depois da sazão das chuvas, ainda se pendura de uma rija liana, entrelaçada de orquídeas, e se balança, e arqueia o pulo, com pesada indolência. E receio bem que quando a aragem restolhasse pela espessura, carregada com o cheiro morno e acre das fêmeas acocoradas nos cimos, o Pai dos Homens aindadilatasse as ventas chatas e soltasse do peito felpudo um grunhido rouco e triste.

QUEIROZ, Eça de. Adão e Eva no Paraíso. Biblioteca Digital PUC-Campinas. Disponível em: https://tinyurl.com/y6zpelrm. Acesso em: 04 set. 2019.

“E receio bem que quando a aragem restolhasse pela espessura, carregada com o cheiro morno e acre das fêmeas acocoradas nos cimos, o Pai dos Homens ainda dilatasse as ventas chatas e soltasse do peito felpudo um grunhido rouco e triste.”

Na parte assinalada do trecho, o procedimento estilístico utilizado foi
A
o uso do discurso indireto livre das personagens.
B
a intromissão do narrador.
C
a digressão narrativa.
D
o monólogo interior.
E
o memorialismo idílico.