Aurora sem dia
O poeta puxou da algibeira o Correio Mercantil, e o velho Anastácio entrou a ler para si a obra do afilhado. Com os olhos pregados no padrinho, Luís Tinoco parecia querer adivinhar as impressões que produziam nele os seus elevados conceitos, metrificados com todas as liberdades possíveis e impossíveis do consoante. Anastácio acabou de ler os versos e fez com a boca um gesto de enfado.
– Isto não tem graça – disse ele ao afilhado estupefato –; que diabo tem a lua com a indiferença dessa moça, e a que vem aqui a morte deste estrangeiro?
Luís Tinoco teve vontade de descompor o padrinho, mas limitou-se a atirar os cabelos para trás e a dizer com supremo desdém:
– São coisas de poesia que nem todos entendem; esses versos sem graça são meus.
– Teus? – perguntou Anastácio no cúmulo do espanto.
– Sim, senhor.
– Pois tu fazes versos?
– Assim dizem.
– Mas quem te ensinou a fazer versos?
– Isto não se aprende; traz-se do berço.
Anastácio leu outra vez os versos, e só então reparou na assinatura do afilhado. Não havia que duvidar: o rapaz dera em poeta. Para o velho aposentado era isto uma grande desgraça. Este, ligava à ideia de poeta a ideia da mendicidade. Tinham-lhe pintado Camões e Bocage, que eram os nomes literários que ele conhecia, como dois improvisadores de esquina, espeitorando sonetos em troca de algumas moedas, dormindo nos adros das igrejas e comendo nas cocheiras das casas grandes. Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado.
– Dou-lhe parte de que o Luís está poeta.
– Sim? – perguntou-lhe o Dr. Lemos. – E que tal lhe saiu o poeta?
– Não me importa se saiu mau ou bom. O que sei é que é a maior desgraça que lhe podia acontecer, porque isso de poesia não dá nada de si. Tenho medo que deixe o emprego, e fique aí pelas esquinas a falar à lua, cercado de moleques.
O Dr. Lemos tranquilizou o homem dizendo-lhe que os poetas não eram esses vadios que ele imaginava; mostroulhe que a poesia não era obstáculo para andar como os outros, para ser deputado, ministro ou diplomata.
Fonte: MACHADO, Assis. Contos escolhidos. Rio de Janeiro: Martin Claret, 2012, p. 140-142. [Fragmento]
Sobre o fragmento do conto Aurora sem dia, de Machado de Assis, assinale a alternativa CORRETA.