(SOMATÓRIA)
Ricordanza della mia gioventú
A minha ama de leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!
Minha ama, então, hipócrita, afetava
Susceptibilidades de menina:
“ – Não, não fora ela! –” E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.
Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o oiro, que brilha...
Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!
ANJOS, A. dos. Eu e outras poesias. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 85.
VOCABULÁRIO:
Oiro: ouro
01) O poema revela o posicionamento do eu lírico como consciente da intensa desigualdade social que, devido ao processo de formação da sociedade brasileira, serviu, e ainda serve, como base para a geração de privilégios e luxos da elite econômica nacional.
02) O poema ressalta a noção de que o ato de furtar, mesmo em circunstâncias diversas, possui sempre impacto muito similar. Esse aspecto se faz presente pela equiparação dos danos causados tanto ao eu lírico quanto à filha da ama de leite.
04) Ainda que nesse poema o autor não aborde a temática da podridão da carne post morten (tão recorrente em sua obra), na opressiva relação de poder em que se inserem tanto a ama de leite e sua filha, quanto as pessoas que elas representam, evidencia-se, em sentido metafórico, a podridão da estrutura social escravocrata que perdurou por séculos na sociedade brasileira.
08) Na segunda estrofe, a alternância entre versos decassílabos e dodecassílabos quebra qualquer padrão de regularidade dos versos do poema, atitude que demonstra a aversão do poeta às regras clássicas.
16) Além da temática social, a ruptura com a estrutura formal clássica, tanto nesse quanto na maioria dos poemas de Augusto dos Anjos, permite compreender o porquê de a crítica literária caracterizar o poeta como o autor mais representativo do Modernismo brasileiro.