DIA APÓS DIA
Hoje é dia 13 de maio. É dia da libertação dos escravos. Segunda-feira. É dia de feira livre. Liguei o rádio de pilha e tocavam o “Danúbio Azul”. Fiquei radiante. Vesti-me, desci, comprei flores em nome daquele que morreu ontem. Cravos vermelhos e brancos. Como eu tenho repetido à exaustão, um dia se morre. E morre-se em vermelho e branco. O homem que morreu era um puro: trabalhava em prol da humanidade, avisando que a comida no mundo ia acabar. Restou Laura, sua mulher.Mulher forte, mulher vidente, de cabelos pretos e olhos pretos. Daqui a dias vou visitá-la. Ou pelo menos falar com ela ao telefone.
Ontem, dia 12 de maio, Dia das Mães, não vieram as pessoas que tinham dito que vinham. Mas veio um casal amigo e saímos para jantar fora. Melhor assim. Não quero mais depender de ninguém. Quero é o “Danúbio Azul”. E não “Valsa Triste” de Sibellius, se é que é assim que se escreve o seu nome.
Desci de novo, fui ao botequim de seu Manoel para trocar as pilhas de meu rádio. Falei assim para ele:
– O senhor se lembra do homem que estava tocando gaita no sábado? Ele era um grande escritor.
– Lembro sim. É uma tristeza. É neurose de guerra. Ele bebe em toda a parte.
Fui embora.
Quando cheguei em casa uma pessoa me telefonou para dizer-me: pense bem antes de escrever um livro pornográfico, pense se isto vai acrescentar alguma coisa à sua obra. Respondi:
– Já pedi licença a meu filho, disse-lhe que não lesse meu livro. Eu lhe contei um pouco as histórias que havia escrito. Ele ouviu e disse: está bem. Contei-lhe que meu primeiro conto se chamava “Miss Algrave”. Ele disse: “grave” é túmulo. Então lhe contei do telefonema da moça chorando que o pai morrera. Meu filho disse como consolo: ele viveu muito. Eu disse: viveu bem.
Mas a pessoa que me telefonou zangou-se, eu me zanguei, ela desligou o telefone, eu liguei de novo, ela não quis falar e desligou de novo. Se este livro for publicado com mala suerte estou perdida. Mas a gente está perdida de qualquer jeito. Não há escapatória. Todos nós sofremos de neurose de guerra.
Lembrei-me de uma coisa engraçada. Uma amiga que tenho veio um dia fazer a feira aqui defronte de minha casa. Mas estava de short. E um feirante gritou-lhe:
– Mas que coxas! que saúde!
Minha amiga ficou danada da vida e disse-lhe:
– Vá dizer isso para aquela que o pariu!
O homem riu, o desgraçado.
Pois é. Sei lá se este livro vai acrescentar alguma coisa à minha obra. Minha obra que se dane. Não sei por que as pessoas dão tanta importância à literatura. E quanto ao meu nome? que se dane, tenho mais em que pensar.
(Clarice Lispector. Via Crucis do Corpo. RoccoDigital: São Paulo, 2017.)
Assinale, a seguir, a alternativa em que o trecho do texto apresenta incorreção quanto ao uso do sinal de vírgula.