Questão
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina - IFSC
2014
Fase Única
Dois-escritores-seus86331dce7ce
Discursiva
“Dois escritores e seus cães” - Roberto Pompeu de Toledo – ensaio

De como Machado de Assis e Graciliano Ramos se revelam ao matar seus bichos de estimação Quincas Borba e Baleia viveram em épocas diferentes e lugares diferentes, mereceram cuidados diferentes. Por seus focinhos, passaram dois Brasis diferentes. Estamos falando de cães, já se sabe. E não de cães de existência real – cães de literatura. Quincas Borba é personagem, se é que cão pode ser personagem, de romance de mesmo nome de Machado de Assis, publicado em 1891. Baleia figura em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, publicado em 1938. É a cachorrinha da família de retirantes nordestinos constituída por Fabiano, Vitória e dois filhos pequenos. [...]

O nome Quincas Borba é exótico não apenas porque é nome de gente aplicado a bicho. É exótico, principalmente, porque é o mesmo nome do dono, um Joaquim Barbosa dos Santos, dito Quincas Borba, que resolveu dar seu nome ao cão para, caso morresse antes, e dispõe em testamento que toda sua considerável fortuna, (…) passasse a seu melhor amigo, Pedro Rubião de Alvarenga, com uma condição: que ele cuidasse de Quincas Borba, o cão.

Eis então o cão Quincas Borba instalado com seu novo dono numa ampla casa dando para a enseada de Botafogo, vale dizer, nada menos que de cara para o Pão de Açúcar, e tratado com cuidados burgueses: boa alimentação, banho, passeios com o dono. Rubião às vezes se impacientava e aplicava-lhe uma pancada, mas que é isso, para abalar a infinita afeição de um cão ao dono? Machado de Assis, esplêndido analista das almas, inclusive das caninas, explica: “Tem (Quincas Borba) o sentimento da confiança, e muito curta a memória das pancadas. Ao contrário, os afagos ficam-lhe impressos e fixos, por mais distraídos que sejam. Gosta de ser amado. Contenta-se de crer que o é.”

À pobre Baleia o destino reservou a tarefa de caçar preás para a família de Fabiano. Ela própria se contentava com os poucos ossos. Baleia, seria preciso dizer, tem aspecto tão diferente de Quincas Borba quanto os meios em que vivem. Quincas Borba, era “um bonito cão, meio tamanho, pelo cor de chumbo, malhado de preto.” Baleia, “arqueada, as costelas à mostra”, (...) O autor só se detém mais na aparência física quando ela fica doente: “Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida”.

É famoso o capítulo em que Fabiano, temendo que a cadelinha estivesse hidrófoba, resolve sacrificá-la (...) Fabiano capricha para, de uma só e certeira vez, acabar com a vida da cachorra, mas acaba acertando a parte traseira, e inutilizando-lhe uma perna, Baleia arrasta-se, latindo com desespero. Foge, mas não consegue ir longe. Morre aos poucos, a cabeça encostada numa pedra, mas tomada por uma espécie de bem-aventurança: “Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num sítio enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.” Quincas Borba, apesar dos confortos de que gozou na vida, também acaba mal. Acompanha o dono mesmo quando Rubião, ensandecido e arruinado, volta a Barbacena, sua cidade natal, e ali morre. Quincas Borba “amanheceu morto na rua, três dias depois”.

Os cães, como se sabe, vão ficando parecidos com seus donos, e este caso não é diferente – mesmo em relação a seus donos verdadeiros, isto é, os escritores Machado de Assis e Graciliano Ramos. O cão de Graciliano Ramos, tal qual Vidas Secas, cumpre uma função social óbvia. O de Machado de Assis dará mais trabalho, a quem lhe procurar a função. Graciliano é autor amargo, mas tempera a amargura com a esperança de mudança do militante comunista que foi. Isso explica que tenha deixado Baleia embalada na ideia de uma espécie de céu dos cachorros. Machado não é amargo: é cético. Bem a seu jeito, não concedeu um sonho feliz a seu cão, ao fazê-lo morrer.

Adaptado de: Veja, 28 de abril de 1999, p.166.

Ainda com relação ao texto, assinale a soma da(s) proposição(ões) CORRETA(S).

01. Segundo o texto, Rubião teria morrido com saúde (“ensandecido”) e arruinado economicamente.

02. Depreende-se, através do ensaio, que o tempo verbal utilizado pelo narrador de Quincas Borba e de Vidas Secas é o mesmo, ou seja, o Pretérito Perfeito do Indicativo.

04. A palavra “Bem”, iniciando a última frase, é uma interjeição e deveria ser seguida de vírgula. No entanto, o autor do ensaio infringe as regras gramaticais.

08. Segundo o último parágrafo, os dois escritores a que o ensaio se refere batizaram seus cães dos romances com os mesmos nomes dos seus cães de verdade.

16. A palavra “hidrófoba”, no 5º parágrafo, é composta de dois radicais: “hidro” (do grego “hydro-”) – que significa “água” e “foba” (de “phóbos”, do grego) que significa “pavor”.

32. A frase “À pobre Baleia o destino reservou a tarefa de caçar preás para a família de Fabiano.” Pode ser alterada sintaticamente, sem sofrer alteração de sentido, da seguinte forma: “O destino reservou à pobre Baleia a tarefa de caçar preás para a família de Fabiano.