- Esta ideia para um conto de terror é tão terrível que, logo depois de tê-la, me arrependi. Mas já estava tida, não adiantava mais. Você, leitor, no entanto, tem uma escolha. Pode parar aqui, e se poupar, ou ler até o fim e provavelmente nunca mais dormir. Vejo que decidiu continuar. Muito bem, vamos em frente. Talvez, posta no papel, a ideia perca um pouco do seu poder de susto. Mas não posso garantir nada. É assim:
- Um casal de velhos mora sozinho numa casa. Já criaram os filhos, os netos já estão grandes, só lhes resta implicar um com o outro. Retomam com novo fervor uma discussão antiga. Ela diz que ele ronca quando dorme, ele diz que é mentira.
- — Ronca.
- — Não ronco.
- — Ele diz que não ronca — comenta ela, impaciente, como se falasse com uma terceira pessoa.
- Mas não existe outra pessoa na casa. Os filhos raramente visitam. Os netos, nunca. A empregada vem de manhã, faz o almoço, deixa o jantar feito e sai cedo. Ficam os dois sozinhos.
- — Eu devia gravar os seus roncos, pra você se convencer — diz ela. E em seguida tem a ideia infeliz. — É o que eu vou fazer! Esta noite, quando você dormir, vou ligar o gravador e gravar os seus roncos.
- — Humrfm — diz o velho.
- Você, leitor, já deve estar sentindo o que vai acontecer. Pare de ler, leitor. Eu não posso parar de escrever. As ideias não podem ser desperdiçadas, mesmo que nos custem amigos, a vida ou o sono. Imagine se Shakespeare tivesse se horrorizado com suas próprias ideias e deixado de escrevê-las, por puro comedimento. Não que eu queira me comparar a Shakespeare. Shakespeare era bem mais magro. Tenho que exercer este ofício, esta danação. Você, no entanto, não é obrigado a me acompanhar, leitor. Vá passear, vá tomar sol. Uma das maneiras de controlar a demência solta no mundo é deixar os escritores falando sozinhos, exercendo sozinhos a sua profissão malsã, o seu vício solitário. Você ainda está lendo. Você é pior do que eu, leitor. Você tinha escolha.
- Sozinhos. Os velhos sozinhos na casa. Os dois vão para a cama. Quando o velho dorme, a velha liga o gravador. Mas em poucos minutos a velha também dorme. O gravador fica ligado, gravando. Pouco depois a fita acaba.
- Na manhã seguinte, certa do seu triunfo, a velha roda a fita. Ouvem-se alguns minutos de silêncio. Depois, alguém roncando.
- — Rará! — diz a velha, feliz.
- Pouco depois ouve-se o ronco de outra pessoa. A velha também ronca!
- — Rará! — diz o velho, vingativo.
- E em seguida, por cima do contraponto de roncos, ouve-se um sussurro. Uma voz sussurrando, leitor. Uma voz indefinida. Pode ser de homem, de mulher ou de criança. A princípio — por causa dos roncos — não se distingue o que ela diz. Mas aos poucos as palavras vão ficando claras. São duas vozes. É um diálogo sussurrado.
- “Estão prontos?”
- “Não, acho que ainda não…”
- “Então vamos voltar amanhã…”
(Luis Fernando Verissimo. O suicida e o computador, 1992.)
Em “As ideias não podem ser desperdiçadas, mesmo que nos custem amigos, a vida ou o sono.” (9º parágrafo), a oração subordinada expressa ideia de