Questão
Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC Campinas
2018
Fase Única
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Estou lhe escrevendo, Matilda, para lhe transmitir aquilo que a contrariedade (para não falar em indignação) me impediu de lhe dizer de viva voz. Note, é a primeira vez que isso acontece em nossos trinta e cinco anos de casados, mas é uma primeira vez que pode também ser a última. Não é ameaça. É constatação. Estou profundamente magoado com sua atitude e não sei se me recuperarei. 

Tudo por causa de sua teimosia. Você insiste, contra todas as minhas ponderações, em dar a seu pai um corte de casemira inglesa como presente de aniversário. Eu já sei o que você vai me dizer: é seu pai, você gosta dele, quer homenageá-lo. Mas com casemira, Matilda. Com casemira inglesa, Matilda. Que horror, Matilda. 

Raciocinemos, Matilda. Casemira inglesa, você sabe o que é isso? A lã dos melhores ovinos, Matilda. A tecnologia de um país que, afinal, deu ao mundo a Revolução Industrial. O trabalho de competentes operários. E sobretudo a tradição, a qualidade. Esse é o tecido que está em questão, Matilda. A casemira inglesa. 

Há muitos aspectos nesse problema, mas quero deixar de lado tudo o que me parece menos significativo, inclusive o preço. Sim, o preço. Você sabe que sou homem de poucas posses e que um corte de tecido importado custaria bastante, mas vamos admitir que isso seja secundário, vamos omitir esse detalhe; fixemo-nos na própria casemira inglesa, Matilda. 

Obs.: casemira por “casimira”, tecido fino e leve, para vestuário. 

(In: Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 15 e 16)

Sobre o acima transcrito, é correto afirmar: 
A
Nessa carta/conto, o leitor conhece exclusivamente os sentimentos do remetente e os fatos que ele cita; devido às regras do gênero textual adotado, quem lê fica a par também, e somente, do nome do destinatário, que vem expresso em forma de vocativo.
B
O fato de somente o remetente ter direito à fala não impede o acesso do leitor ao que pensa o destinatário; por meio da onisciência, o marido pode apreender e informar o que a esposa iria dizer para justificar o presente que queria dar ao pai.
C
Tratando-se de adaptação de uma carta, o texto não contém todos os aspectos formais do gênero, estando ausentes a indicação de local e data, a saudação; assim, o leitor não chega a conhecer traço algum que lhe permita avaliar o tempo ou o espaço em que as ações têm lugar.
D
Da opção por construir um conto em que a prática de escrever uma carta familiar é encenada decorre o relato em primeira pessoa e o tom de intimidade adotado; o fato de um homem escrever para a sua mulher dá ao leitor a ilusão de estar fazendo parte da privacidade alheia.
E
Na interlocução, estão presentes remetente e leitor, este a quem o marido fala de seus sentimentos e intenções; com a frase Raciocinemos, Matilda, a esposa é convidada a entrar na conversa, quando, na verdade, está sendo exposta a uma cerrada argumentação para que mude de ideia.