Questão
Universidade Federal de Pelotas - UFPEL
2007
Fase Única
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Firmado como uma voz de expressão de classes marginalizadas, o rap é um estilo musical que se caracteriza por letras engajadas e de protesto. Um dos expoentes desse estilo é o grupo Racionais MCs, cuja letra “Negro drama” é apresentada a seguir.

Negro drama,
entre o sucesso e a lama,
dinheiro, problemas,
inveja, luxo, fama.

Negro drama,
cabelo crespo
e a pele escura,
a ferida, a chaga,
à procura da cura.

Negro drama,
tenta ver
e não vê nada,
a não ser uma estrela,
longe, meio ofuscada.

Sente o drama,
o preço, a cobrança,
no amor, no ódio,
a insana vingança.
Negro drama,
eu sei quem trama,
e quem ‘tá comigo,
o trauma que eu carrego,
pra não ser mais um preto
fodido.

O drama da cadeia e favela,
túmulo, sangue,
sirene, choros e vela.

Passageiro do Brasil,
São Paulo,
agonia que sobrevive,
em meio às zorras e
covardias,
periferias, vielas e cortiços.

Você deve ‘tá pensando
o que você tem a ver com
isso.

Desde o início,
por ouro e prata,
olha quem morre,
então veja você quem mata.
Recebe o mérito a farda
que pratica o mal.
Me ver
pobre, preso ou morto
já é cultural.

Histórias, registros,
escritos,
não é conto,
nem fábula,
lenda ou mito.
Não foi sempre dito
que preto não tem vez?
Então, olha o castelo, irmão,
foi você quem fez, cuzão.

Eu sou irmão
dos meus truta de batalha.
Eu era a carne,
agora sou a própria navalha.

Tim…tim…
um brinde pra mim,
sou exemplo de vitórias,
trajetos e glórias.

O dinheiro tira um homem
da miséria,
mas não pode arrancar,
de dentro dele,
a favela.
São poucos
que entram em campo pra
vencer.
A alma guarda
o que a mente tenta
esquecer.

Olho pra trás,
vejo a estrada que eu trilhei,
mó cota
quem teve lado a lado,
e quem só ficô na bota,
entre as frases,
fases e várias etapas,
do ‘quem é quem’,
dos mano e das mina fraca.

Hum... negro drama de
estilo,
pra ser,
e se for,
tem que ser,
se temer é milho.

Entre o gatilho e a
tempestade,
sempre a provar
que sou homem e não um
covarde.

Que Deus me guarde,
pois eu sei
que ele não é neutro,
vigia os rico,
mas ama os que vêm do
gueto.

Eu visto preto,
por dentro e por fora,
guerreiro,
poeta entre o tempo e a
memória.

Ora, nessa história,
vejo o dólar e vários quilates,
falo pro mano que não
morra, e também não mate.
O tic tac

não espera, veja o ponteiro,
essa estrada é venenosa,
e cheia de morteiro.
Pesadelo,
hum, é um elogio.
Pra quem vive na guerra,
a paz nunca existiu.
Num clima quente,
a minha gente sua frio,
e um pretinho,
seu caderno era um fuzil.

Um fuzil,
negro drama.

Crime, futebol, música,
caraio,
eu também não vô consegui
fugi disso aí.
Eu sô mais um.
Forrest Gump é mato,
eu prefiro contar uma
história real. (…)

Ei, senhor de engenho,
eu sei
bem quem você é,
sozinho, ‘cê num ‘güenta,
sozinho,
‘cê num ‘güenta a pé.

‘Cê disse que era bom,
e as favela ouviu, lá
também tem
whiski e red bull,
tênis nike,
fuzil.

Admito,
seus carro é bonito, é,
eu não sei fazê
internet, video-cassete,
os carro loco.

Atrasado,
eu ‘tô um pouco sim,
‘tô,
eu acho sim,
só que tem que
seu jogo é sujo,
e eu não me encaixo,
eu sou problema de montão,
de carnaval a carnaval,
eu vim da selva,
sou leão,
sou demais pro seu quintal.

Problema com escola,
eu tenho mil,
mil fita,
inacreditável, mas seu filho
me imita.

No meio de vocês,
ele é o mais esperto,
ginga e fala gíria,
gíria não, dialeto.

Esse não é mais seu,
ó,
subiu,
entrei pelo seu rádio,
tomei,
‘cê nem viu.

Nóis é isso ou aquilo,
o quê?
‘cê não dizia?
Seu filho quer ser preto,
rá, que ironia!

Cola o pôster do Tupac ae,
que tal?
Que ‘cê diz?
Sente o negro drama,
vai,
tenta ser feliz.

Ei, bacana,
quem te fez tão bom assim?
O que ‘cê deu,
o que ‘cê faz,
o que ‘cê fez por mim?

Eu recebi seu tic,
quer dizer kit,
de esgoto a céu aberto
e parede madeirite.

De vergonha eu não morri,
tô firmão,
eis-me aqui.

Você não,
‘cê não passa,
quando o Mar Vermelho
abrir.

Eu sou o mano,
homem duro,
do gueto, Brown,

Obá,

aquele louco
que não pode errar,
aquele que você odeia
amar nesse instante,
pele parda,
ouço funk,
e de onde vêm,
os diamantes,
da lama.

Valeu, mãe,

negro drama,
drama, drama.

Para Charaudeau e Maingueneau, a metáfora é uma figura do discurso e possui funções discursivas: a) uma função estética: ornamentar o discurso, sobretudo o literário; b) uma função cognitiva: explicação por meio de analogias de algo novo ou de pouco conhecimento; c) uma função persuasiva: os diversos discursos – políticos, morais – usam a metáfora como forma de impor opiniões de maneira não explícita.

Nos versos “eu vim da selva, eu sou leão, eu sou demais pro seu quintal”, percebemos a utilização de várias metáforas que demonstram ter tido a valentia do eu-lírico origem na situação extremamente adversa em que ele vive (selva). “Quintal” é outro termo que conota de forma interessante a visão do eu-lírico sobre as pretensões do branco, causando um efeito retórico bastante incisivo.

Com base nisso, assinala a alternativa que contém uma metáfora com a correta interpretação de a que essa figura de linguagem se refere.
A
“olha o castelo, irmão” – as promessas de igualdade a todos os cidadãos independentemente de etnia ou status social.
B
“Ei, senhor de engenho, eu sei” – alusão aos contínuos casos de exploração de trabalhadores em regime (semi)escravo nas localidades mais remotas do país.
C
“Você não, ‘cê não passa, quando o Mar Vermelho abrir” – crítica à falta de valores religiosos da classe média branca em contraposição ao crescimento da religião evangélica nas classes menos abastadas.
D
“mas não pode arrancar, de dentro dele, a favela” – persistência do preconceito contra o favelado, embora uma situação econômica mais favorável.
E
 “Eu visto preto por dentro e por fora” – referência respectivamente ao luto pela situação (atual) do negro no país e à construção de uma identidade negra pelo autor.
F
I.R.