Questão
Provão de Bolsas Estratégia
2021
Fase Única
Guarapiranga-lugar6299cdc714c
Guarapiranga – lugar da garça vermelha

O dia na aldeia costuma começar sempre muito cedo. Lembro que no meu tempo de menino, vivendo as agruras do crescimento e dos ritos de passagem, costumávamos sair de casa muito antes do sol nascer. Nossos avós nos diziam que era o momento mais importante do dia. Era a hora de tomar o banho gelado que expulsa os maus espíritos da noite e nos dá disposição para enfrentar o novo amanhecer.

A roça – lugar onde plantamos a mandioca – não ficava muito perto, não. Era longe e tínhamos que realizar longas jornadas até chegar lá. Assim, um pouco antes de o sol nascer já estávamos em pleno curso, seguindo o caminho muitas e muitas vezes pisado.

Meninos ainda, tínhamos a tarefa de ir na frente para espreitar os perigos da mata. Fazíamos isso nos divertindo: catando cocos de tucum, comendo ingaxixica, maracujá do mato ou simplesmente olhando as meninas que vinham logo atrás carregando os paneiros para serem enchidos de gostosuras da floresta.

Durante toda a manhã ficávamos assim, ora tirando os arbustos que teimavam em crescer abafando os pés de mandioca, ora coletando frutas pelas redondezas, ora subindo nas árvores, ora seguindo as moças que iam se banhar no igarapé ou ora pulando nas águas gélidas o velho Tapajós.

Matávamos a fome comendo melancia com farinha de tapioca ou chibé, que é uma mistura de água fresca com farinha. Acompanhada de frutas, nossa refeição era um verdadeiro banquete que nos mantinha em pé e dispostos a trabalhar ainda mais.

Nessas saídas para a roça acontecia de tudo, pois era o momento solene em que tínhamos de conhecer a mata das redondezas, aprender a ler as pegadas dos animais e dos pássaros, saber definir qual era o sexo daqueles animais que haviam deixado ali suas marcas, aprender a ler os sinais da natureza com naturalidade de quem aprende a falar. E isso fazíamos sozinhos. Nossos pais sempre confiavam na gente e nós nunca os decepcionávamos. Quando voltávamos para a aldeia, quase no fim da tarde, estávamos cansados, esgotados, mas com o semblante feliz de quem tinha aproveitado aquele dia. Ainda assim, brincávamos um pouco mais para deixar que o sono nos alcançasse e depois pudéssemos deitar nossas cabeças na rede e sonhar com os espíritos dos antepassados. Quando o dia terminava também era muito comum a gente escutar as histórias dos mais velhos. É claro que, na maioria das vezes, a meninada dormia antes de ouvir o final da história. Isso era motivo de muita alegria, pois, como nos ensinavam os avós, através dos sonhos a gente também aprendia. Nosso espírito estava solto e podia alcançar nossos ancestrais no mundo dos sonhos. Nessa hora muita coisa nos era ensinada por eles, que contavam histórias de muito antigamente.

Pensei nisso quando cheguei à represa de Guarapiranga. Fiquei com saudades do tempo de criança, ao ver toda aquela água. Imaginei-me na aldeia em que vivi minha primeira infância. Pensei nos caminhos, nos passarinhos, nos amigos e irmãos que cresceram comigo. Reportei-me aos antepassados dos povos que aqui viviam e me senti, de certa forma, pisando sobre um solo sagrado.

Por ter me sentido um fio na teia, quis pisar naquela água que sacia a sede de tantos milhões de pessoas. Fechei os olhos com alguma cerimônia e elevei uma prece aos céus, desejando que todos os que tinham o corpo enterrado naquele solo pudessem encontrar descanso no lugar onde o sol se põe. Que todos os que utilizam aquela água nunca esqueçam de olhar para o horizonte e agradecer aos nossos primeiros pais.

MUNDURUKU, Daniel. Crônicas de São Paulo – um olhar indígena. 2ª ed. São Paulo: Callis, 2010.

Em português, é possível o uso de um tempo verbal em lugar de outro. Analise as ocorrências retiradas do texto e assinale a alternativa correta
A
Em “O dia na aldeia costuma começar sempre muito cedo”, encontramos verbo que exprime presente “universal”, com caráter atemporal.
B
Em “Lembro que no meu tempo de menino, vivendo as agruras do crescimento e dos ritos de passagem, (...)”, temos verbo no particípio indicando ação já acabada.
C
Em “Era a hora de tomar o banho gelado que expulsa os maus espíritos da noite e nos dá disposição para enfrentar o novo amanhecer”, encontramos verbo que indica ação atemporal, não situando o processo verbal no tempo.
D
Em “Nossos pais sempre confiavam na gente e nós nunca os decepcionávamos”, temos verbo que exprime fato passado já concluído, mas apresentando incerteza.
E
Em “Pensei nisso quando cheguei à represa de Guarapiranga”, temos verbos exprimindo ações de ocorrência do momento da fala.