Questão
Universidade Estadual do Centro-Oeste - Unicentro
2017
Fase Única
VER HISTÓRICO DE RESPOSTAS
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I.

Nasceu aquela flor em Covelinhas, dum castanheiro velho, o Lourenço Abel, e duma urze mirrada, a Joana Benta.

Nasceu e cresceu tão linda, tão airosa, que o povo em peso punha os olhos nela. Só tinha um defeito...

— Verduras da mocidade! – pretextava a Cláudia, quando

o homem, ao lume, censurava os namoros da rapariga.

— Ultrapassa as marcas! Dá trela a quantos há na freguesia... [...]

A Lídia é que não queria saber de desgraças. Muito bem feita, muito corada, com aqueles dois olhos de veludo que ameigavam tojos, depois de cada sarrafusca a que dava azo, passava pela rua acima em direcção às hortas como se nada fosse. E o povo inteiro rendia-se-lhe aos pés, num sorriso de perdão, de complacência e de carinho.

— Tu a quantos atendes? – perguntava-lhe em confidência a Mariana, já com cinquenta e dois e ainda de olhinho a reluzir.

— A nenhum. Ninguém me quer, tia Mariana! E dava uma gargalhada das dela, muito clara, muito pura, pondo à mostra uns dentes que cegavam a gente.

— Raios te partam, rapariga! Trazes um regimento à corda, e a dizer que ninguém te quer! [...]

Mas com palavras tinha ela posto a cabeça do Verdeal e do Lúcio a andar à roda. A mangar, a mangar, jurava a cada um que não queria mais ninguém e que os outros lhe rondavam a casa por palermice. [...] 

Oh! E aconteceu o que tinha de acontecer. Nessa mesma noite, depois da ceia, o Verdeal, ao voltar à esquina da eira, viu um vulto à porta do quinteiro da moça. Disfarçou-se na sombra e chegou-se perto. Era o Lúcio a falar com ela. Avançou até junto deles. No calor da conversa, nem o viram.

Alheia, numa volúpia de irresponsabilidade, a Lídia assistia àquela disputa de que era a causa, divertida como uma criança. Quase que nem ouviu o simultâneo deflagrar das armas.

— Canalha! Seguiram-se mais dois estalidos secos.

— Cabrão! Os insultos como que eram apenas um  comentário desdenhoso à margem dos tiros rápidos e sucessivos.

— Excomungada! A inesperada maldição entrou na alma da Lídia como um punhal de quem vinha? Da boca do Lúcio, ou da boca do Verdeal?

Mas não pôde sabê-lo. Ambos jaziam quase a seus pés, cada um no último arranco. E quando a mãe, espavorida, em saiote, abriu a porta, veio encontrá-la ainda alheada junto dos dois mortos, a tentar compreender a violência daquela queixa.

TORGA, Miguel. Amor. In: Contos da Montanha. Disponível em: <https://cld.pt/dl/download/372f3a9a-5a3d-4770-a31b-b677ef652e44/
Miguel%20Torga%20-%20Contos%20da%20montanha.pdf?public=372f3a9a-5a3d-4770-a31b-b677ef652e44>. Acesso em: 25 jul. 2016. 

II.

Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

[...] Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de novembro de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor.

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. [...]

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia.

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. [...]

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.

— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.

 ASSIS, Machado de. A Cartomante. In: Várias histórias. Disponível em: <http://philpapers.org/archive/AMEKDO.pdf.>. Acesso em: 25 jul. 2016

Embora de autores e épocas diferentes, os dois textos apresentam em comum 
A
o universo psicológico das personagens confundindo-se com o social, apesar de seus dissabores serem encarados de modo diferenciado, mesmo que suas ações revelem a face do amor sempre acompanhada de sofrimento. 
B
o narrador adquirindo uma existência textual, quase na condição de quem conta os fatos assumindo a maneira de pensar dos protagonistas, para melhor conduzir a mediação dos conflitos existentes entre eles. 
C
a sugestão de uma postura introspectiva como o verdadeiro caminho a ser palmilhado pelo homem a fim de atingir a compreensão de si mesmo e conduzir sua trajetória existencial sem cometer deslizes. 
D
a fatalidade como consequência da conduta irreverente da figura feminina que, em circunstâncias distintas e por razões diferentes, se deixa guiar pela leviandade, desestruturando pessoas. 
E
o caráter objetivo da narrativa, voltado para a análise das relações amorosas, a fim de demonstrar que a transgressão de convenções sociais nem sempre acaba sendo prejudicial ao ser humano.