Indiana vira heroína ao desafiar dote
Jovem chamou polícia para prender noivo; costume causa morte de 6 mil mulheres por ano
Flávio Henrique Lino
Era para ser apenas mais um dos milhões de casamentos que ocorrem a cada ano na Índia. Os convidados dos noivos já começavam a chegar para a cerimônia no último dia 11 de maio e a estudante de engenharia de programas Nisha Sharma, de 21 anos, preparava-se para seu grande momento. Em questão de minutos, no entanto, Nisha estava no celular chamando a polícia para prender seu futuro marido - um professor de informática - e a caminho de tornar-se uma celebridade nacional.
O motivo da reviravolta foi a agressão sofrida pelo pai da estudante, esbofeteado por um enfurecido noivo por tentar argumentar contra o pedido de um dote extra feito de última hora à família de Nisha: além de um carro zerinho na garagem e dos eletrodomésticos em pares que recebera, Munish Dalal e seus parentes queriam mais 1,2 milhão de rúpias (US$ 25 mil). Escorada na Lei de Proibição de Dotes, de 1961, Nisha botou o ex-futuro marido na cadeia e forçou a sogra e outros parentes dele a se esconderem por cumplicidade no crime, que nos casos mais graves custa a vida a seis mil mulheres por ano na Índia, segundo estimativas do governo.
- Eles não estavam só pedindo dinheiro, eles agrediram meu pai. Munish queria casar comigo ou com meu dinheiro? - disse Nisha ao GLOBO, por telefone, de sua casa em Nova Délhi.
Nos dias que se seguiram, a jovem estudante ganhou as manchetes dos jornais indianos e seu gesto reverberou nos quatro cantos do imenso país, onde, apesar da lei de 1961, a prática do dote no casamento ainda é amplamente aceita em todas as classes sociais.
- Essa prática não só continua, mas parece ter se acelerado nos últimos anos por causa do aumento do consumismo na sociedade indiana e de outras forças de mercado - explicou, de Nova Délhi, a advogada Kirpi Singh, da Associação Democrática das Mulheres de Toda a Índia.
Dote leva a infanticídio feminino e aborto seletivo
A atitude de Nisha é raríssima no país, onde a família da noiva fica estigmatizada quando o casamento por alguma razão é cancelado. Daí a fama instantânea que caiu sobre a jovem universitária, já sondada por partidos políticos para disputar uma cadeira na assembléia estadual de Uttar Pradesh nas próximas eleições. Nos dias seguintes ao episódio, havia filas de parentes, amigos e admiradores que foram à casa dela cumprimentá-la por seu gesto.
- Não fiquei com medo das conseqüências porque toda a minha família me apoiou. Quando os seus pais estão com você, não se deve temer o julgamento da sociedade - contou Nisha, que recebeu mais de 50 propostas de casamento de novos pretendentes que disseram admirá-la por sua atitude.
O gesto da estudante encorajou outras mulheres a seguirem seu exemplo: desde 11 de maio já houve pelo menos dez casos de noivas que denunciaram as famílias dos futuros maridos por exigência ilegal de dote.
O problema, porém, é muito mais grave do que a extorsão pré-marital sofrida por Nisha e por tantas outras: anualmente, cerca de seis mil mulheres são assassinadas na Índia pelas famílias dos maridos por insatisfação com o dote recebido, exigência de mais dote ou simplesmente para abrir caminho a um novo casamento e um novo dote. Uma ala criada só para sogras criminosas numa prisão em Nova Délhi abrigava tempos atrás 150 mulheres, um terço do total de presas.
Um outro efeito perverso da prática do dote é o infanticídio feminino e o aborto seletivo de fetos de mulheres, como forma de evitar o fardo financeiro que o pagamento de futuros dotes causará à família. Segundo o Fundo da ONU para População, a taxa de mortalidade infantil feminina na Índia é 40% mais alta que a masculina, sendo o dote a segunda causa de morte, perdendo apenas para a miséria.
- A solução é a educação. Quanto mais mulheres tiverem acesso a educação e se tornarem independentes, mais elas rejeitarão a prática do dote - disse, de Nova Délhi, a presidente da Comissão Nacional de Mulheres da Índia, Poornima Advani, destacando a importância de divulgar casos como o de Nisha.
(O Globo, 1 de junho de 2003)
3.1 - Explique por que se pode dizer que o comportamento da heroína indiana do Texto 2 ilustra, ao mesmo tempo, o movimento de "carregar bandeira" e a condição "ainda envergonhada" da mulher, tematizados no Texto 1.
3.2 - Substitua as expressões sublinhadas nas orações abaixo por outras que mantenham o sentido original sem provocar qualquer outra alteração na estrutura das frases.
(A) O gesto de Nisha reverberou nos quatro cantos daquele imenso país.
(B) Escorada na Lei de Proibição de Dotes, Nisha botou o ex-futuro marido na cadeia.
(C) Nisha estava a caminho de tornar-se uma celebridade nacional.
(D) Poormina Advani destacou a importância de divulgar casos como o de Nisha.