Leia o excerto da obra, Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, para responder a questão.
Nos tempos de roça de Ponciá, nos tempos de casa de pau a pique, de chão de barro batido, de bonecas de espigas de milho, de arco-íris feito cobra-coral bebendo água no rio, a menina gostava de ser mulher, era feliz. A mãe nunca reclamava da ausência do homem. Vivia entretida cantando com as suas vasilhinhas de barro. Quando ele chegava, era ela quem determinava o que o homem faria em casa naqueles dias. O que deveria fazer quando regressasse lá para as terras dos brancos. O que deveria dizer para eles. O que deveria trazer da próxima vez que voltasse em casa. Enrolava as vasilhas de barro em folhas de bananeira e palhas secas, apontava as que eram para vender e estipulava o preço. As que eram para dar de presente, nomeava quem seria o dono. O pai às vezes discordava de tudo. Do que iria fazer naqueles dias de estada em casa, do preço estipulado para as peças e das pessoas que ganhariam os presentes. A mãe repetia o que havia dito anteriormente. O pai fazia ali o que ela havia pedido e saía sem se despedir dela e da filha, puxando o filho pela mão. A mãe da soleira da porta abençoava o filho e desejava em voz alta que eles seguissem a caminhada com Deus [...].
O tempo passava, a menina crescia e não se acostumava com o próprio nome. Continuava achando o nome vazio, distante. Quando aprendeu a ler e a escrever, foi pior ainda, ao descobrir o acento agudo de Ponciá. Às vezes num exercício de autoflagelo ficava a copiar o nome e a repeti-lo, na tentativa de se achar, de encontrar o seu eco. E era tão doloroso quando grafava o acento. Era como se estivesse lançando sobre si mesma uma lâmina afiada a torturar-lhe o corpo. Ponciá Vicêncio sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde antes do avô de seu avô, o homem que ela havia copiado de sua memória para o barro e que a mãe não gostava de encarar. O pai, a mãe, todos continuavam Vicêncio. Na assinatura dela a reminiscência do poderio do senhor, um tal coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens. E Ponciá? De onde teria surgido Ponciá? Por quê? Em que memória do tempo estaria escrito o significado do nome dela? Ponciá Vicêncio era para ela um nome que não tinha dono.
EVARISTO, Conceição. In: Ponciá Vicêncio, 2018, p. 24, 26 e 27.
Sobre esse fragmento do romance (de Conceição Evaristo), avalie as afirmações a seguir.
I. O fragmento está escrito em discurso direto cujo narrador fala em 1ª pessoa do singular.
II. A narrativa aborda sobre uma família negra que vivia na terra de coronéis desde os antepassados. O pai e o irmão trabalhavam na terra dos brancos, enquanto a mãe fabricava peças de barro, e a filha tinha espigas de milho e o arco-íris como brinquedos.
III. O texto revela uma família patriarcal, cujo silêncio entre os membros demonstra o comportamento autoritário do pai como homem que tinha poder dentro de casa em relação à mãe e à filha. O menino seguia os passos dele.
IV. Ponciá era uma menina sensível que, embora não expressasse com palavras, compreendia a escravidão em que a família vivia. Os brancos, da família Vicêncio, para garantir o poderio e a propriedade sobre os negros, transferiu para eles o sobrenome. Por isso Ponciá, de forma pertinente, tentava encontrar o eco do seu nome, ou seja, o sobrenome dos seus ancestrais africanos.
V. Quanto à variação linguística, o texto está escrito, predominantemente, na variante padrão da língua portuguesa. No trecho “vivia entretida cantando com as suas vasilhinhas de barro”, a palavra em diminutivo é uma forma familiar-afetiva de dizer.
É correto o que se afirma em: