Questão
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP
2019
Fase Única
Leia-fragmento-seguir209bf7f9508
Leia o fragmento a seguir, extraído de “São Marcos”, conto que integra a obra Sagarana, de João Guimarães Rosa.

Foi quase logo que eu cheguei no Calango-Frito, foi logo que eu me cheguei aos bambus. Os grandes colmos¹ jaldes², envernizados, lisíssimos, pediam autógrafo; e alguém já gravara, a canivete ou ponta de faca, letras enormes, enchendo um entrenó:

“Teus olho tão singular
Dessas trançinhas tão preta
Qero morer eim teus braço
Ai fermosa marieta.”

E eu, que vinha vivendo o visto mas vivando estrelas, e tinha um lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo:

Sargon
Assarhaddon
Assurbanipal
Teglattphalasar, Salmanassar
Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor
Belsazar
Sanekherib

E era para mim um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda³ e só representados na poesia. Não pelos cilindros de ouro e pedras, postos sobre as reais comas⁴ riçadas⁵, nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro. Só, só por causa dos nomes. Sim, que, à parte o sentido prisco⁶, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado.

(ROSA, João Guimarães. Ficção completa. Vol 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p. 223-224) 

Vocabulário:

¹ colmo: caule. 
² jalde: cor amarelo-ouro.
³ sanhuda: terrível. 
⁴ comas: cabelos.
⁵ riçadas: crespas. 
⁶ prisco: antigo.

Dentre os aspectos que caracterizam a prosa de João Guimarães Rosa em Sagarana, destaca-se, no fragmento em questão, 
A
a concepção mística da realidade, ilustrada pela fórmula de encantamento (“Sargon... Sanekherib”) empregada pelo narrador para combater seu antagonista. 
B
a crítica às instituições sociais e políticas, evidenciada pela aversão da personagem aos “reis leoninos”, cujo poder ilusório sustenta-se “por causa dos nomes”. 
C
o emprego do discurso indireto livre, por meio do qual concede-se voz às personagens, como comprova o excerto “Só, só por causa dos nomes”. 
D
a poeticidade da linguagem, exemplificada pelas aliterações no trecho “E eu, que vinha vivendo o visto mas vivando estrelas”.