Leia o poema “O profissional da memória” de João Cabral de Melo Neto (1920-1999).
O PROFISSIONAL DA MEMÓRIA
Passeando presente dela
pelas ruas de Sevilha,
imaginou injetar-se
lembranças, como vacina,
para quando fosse dali
poder voltar a habitá-las,
uma e outras, e duplamente,
a mulher, ruas e praças.
Assim, foi entretecendo
entre ela, e Sevilha fios
de memória, para tê-las
num só e ambíguo tecido;
foi-se injetando a presença
a seu lado numa casa,
seu íntimo numa viela,
sua face numa fachada.
Mas desconvivendo delas,
longe da vida e do corpo,
viu que a tela da lembranças
e foi puindo pouco a pouco;
já não lembrava do que
se injetou em tal esquina,
que fonte o lembrava dela,
que gesto dela, qual rima.
A lembrança foi perdendo
a trama exata tecida
até um sépia diluído
de fotografia antiga.
Mas o que perdeu de exato
de outra forma recupera:
que hoje qualquer coisa de um
traz da outra sua atmosfera.
MELO NETO, João Cabral de. O profissional da memória. In: Museu de tudo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 (p. 111-112).
No verso “Mas desconvivendo delas”, pode-se dizer que o emprego do termo sublinhado é semelhante em: