Leia o trecho do conto “A menor mulher do mundo” de Clarice Lispector (1920-1977).
O pai mexeu-se atrás do jornal.
– Deve ser o bebê preto menor do mundo –respondeu a mãe, derretendo-se de gosto. –Imagine só ela servindo a mesa aqui em casa! e de barriguinha grande!
– Chega dessas conversas! –engrolou o pai.
– Você há de convir –disse a mãe inesperadamente ofendida –que se trata de uma coisa rara. Você é que é insensível.
E a própria coisa rara?
Enquanto isso, na África, a própria coisa rara tinha no coração –quem sabe se negro também, pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode mais confiar –enquanto isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais raro ainda, assim como o segredo do próprio segredo: um filho mínimo. Metodicamente o explorador examinou com o olhar a barriguinha do menor ser humano maduro. Foi neste instante que o explorador, pela primeira vez desde que a conhecera, em vez de sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou espírito científico, o explorador sentiu mal-estar.
É que a menor mulher do mundo estava rindo.
Estava rindo, quente, quente. Pequena Flor estava gozando a vida. A própria coisa rara estava tendo a inefável sensação de ainda não ter sido comida. Não ter sido comida era algo que, em outras horas, lhe dava o ágil impulso de pular de galho em galho. Mas, neste momento de tranquilidade, entre as espessas folhas do Congo Central, ela não estava aplicando esse impulso numa ação –e o impulso se concentrara todo na própria pequenez da própria coisa rara. E então ela estava rindo.
Era um riso como somente quem não fala, ri. Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu classificar. E ela continuou fruindo o próprio riso macio, ela que não estava sendo devorada. Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser devorado é o objetivo secreto de toda uma vida. Enquanto ela não estava sendo comida, seu riso bestial era tão delicado como é delicada a alegria. O explorador estava atrapalhado.
Em segundo lugar, se a própria coisa rara estava rindo, era porque, dentro de sua pequenez, grande escuridão pusera-se em movimento.
É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de Amor. Ela amava aquele explorador amarelo. Se soubesse falar e dissesse que o amava, ele inflaria de vaidade. Vaidade que diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava muito a bota do explorador. E quando este desinchasse desapontado, Pequena Flor não compreenderia por quê. Pois, nem de longe, seu amor pelo explorador –pode-se mesmo dizer seu “profundo amor”, porque, não tendo outros recursos, ela estava reduzida à profundeza –pois nem de longe seu profundo amor pelo explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela também amar sua bota. Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos nascem desse equívoco,tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim, de mim! que se goste, e não de meu dinheiro. Mas na umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis, e amor é não ser comido, amor éachar bonita uma bota, amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a um anel que brilha. Pequena Flor piscava de amor, e riu quente, pequena, grávida, quente.
O explorador tentou sorrir-lhe de volta, sem saber exatamente a que abismo seu sorriso respondia, e então perturbou-se como só homem de tamanho grande se perturba. Disfarçou ajeitando melhor o chapéu de explorador, corou pudico. Tornou-se uma cor linda, a sua, de um rosa esverdeado, como a de um limão de madrugada. Ele devia ser azedo.
LISPECTOR, Clarice. A menor mulher do mundo. In: Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
Em seu conto, Clarice Lispector descreve o explorador como