Leia o trecho inicial da crônica “Os últimos lírios no estojo de seda”, de Marina Colasanti
Quando Jung Chang, escritora e historiadora que acaba de publicar uma impressionante biografia de Mao, esteve no Rio para o lançamento do seu livro Cisnes Selvagens, começou a palestra na Casa Laura Alvim por um gesto: da pasta preta tirou um sapatinho de seda bordado que havia sido da sua avó, e a braçadeira que ela mesma havia usado como guarda vermelha da Revolução Cultural. O sapatinho tinha pouco mais de dez centímetros.
Provavelmente, ela não sabia que, na China, o fotógrafo Li Nam já havia começado a fazer o registro dos san-tsu-gin-lian, ou “lírios dourados de oito centímetros”, como eram chamados os pés femininos encolhidos. Agora Li Nam acaba de inaugurar a sua exposição em uma gale- ria fotográfica em Pequim, e em aproximadamente cinquenta fotos mostra à nova China “A última geração de mulheres de pés de lírio”.
A avó de Jung Chang quase escapou de pertencer a essa geração. Poucos anos bastaram para que seu destino fosse andar pelo resto da vida “parecendo um broto de sal- gueiro na brisa da primavera”. Mas aos dois anos de idade, quando a mãe dobrou para trás os dedos dos seus pés e os prendeu com uma tira de pano de seis metros de comprimento, não podia saber que o processo tinha a sua origem num gesto poético. Ninguém lhe disse que dez séculos antes, em busca de um sofisticado prazer, Li Yu, grande poeta do amor e segundo soberano da dinastia dos Tang, havia obrigado sua favorita Yaoniang a enfaixar os pés para dançar sobre uma flor de lótus estilizada. E, se tivessem dito, teriam de acrescentar que ele não havia quebrado o arco dos pés da amada com uma pedra, como fizeram com a menininha, nem haviam molhado a tira de pano, para que encolhesse ao secar, aumentando o aperto e o sofrimento.
(Crônicas para jovens, 2012).
“Ninguém lhe disse que dez séculos antes, em busca de um sofisticado prazer […]” (3° parágrafo)
O pronome sublinhado refere-se