Leia o trecho retirado de Dois irmãos, de Milton Hatoum, para responder à questão.
O outro, o Caçula, exagerava as audácias: gazeava lições de latim, subornava porteiros sisudos do colégio dos padres e saía para a noite, fardado, transgressor dos pés ao gogó, rondando os salões da Maloca dos Barés, do Acapulco, do Cheik Clube, do Shangri-Lá. De madrugada, na hora do último sereno, voltava para casa. E lá estava Zana, impávida na rede vermelha, no rosto a serenidade fingida, no fundo atormentada, entristecida por passar uma noite sem o filho. Omar mal percebia o vulto arqueado sob o alpendre. Ia direto ao banheiro, provocava em golfadas a bebedeira da noite, cambaleava ao tentar subir a escada; às vezes caía, inteiro, o corpanzil suado, esquecido da alquimia da noite. Então ela saía da rede, arrastava o corpo do filho até o alpendre e acordava Domingas: as duas o desnudavam, passavam-lhe álcool no corpo e o acomodavam na rede. Omar dormia até meio-dia. O rosto inchado, engelhado pela ressaca, rosnava pedindo água gelada, e lá ia Domingas com a bilha: derramava-lhe na boa aberta o líquido que ele primeiro bochechava e depois sorvia como uma onça sedenta.
(...)
Zana e Halim foram convocados pelo diretor. Só ela foi, ela e Domingas, sua sombra servil. Soltou cobras e lagartos nas ventas do irmão diretor. O senhor não sabia que o meu Omar adoeceu nos primeiros meses de vida? Por pouco não morreu, irmão. Só Deus sabe... Deus e a mãe... Ela suava, entregue ao êxtase de grande mãe protetora. Ouviram o sino bater seis vezes, o vozerio e a agitação dos internos que se encaminhavam ao refeitório, e logo o silêncio, e a voz dela, mais calma, menos injuriada. Quantos órfãos deste internato comem à nossa custa, irmão? E as ceias de Natal, as quermesses, as roupas que nós mandamos para as índias das missões?
Domingas abanava o corpo da patroa. O irmão diretor suportou o desabafo, (...). Ele abriu uma gaveta e entregou a Zana o boletim de notas e uma cópia da expulsão de Omar. (...)
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Na obra Dois irmãos, Milton Hatoum aborda a tragédia familiar envolvendo uma mãe possessiva e dois irmãos gêmeos que se tornam inimigos. Ao narrar os eventos dessa crise familiar, de forma sutil, a obra toca em outra questão social, observada no trecho