Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas — seis da manhã à meia-noite — nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale cio Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais.
O burrinho permanecia na coberta, teso, sonolento e perpendicular ao cocho, apesar de estar o cocho de-todo vazio. Apenas, quando ele cabeceava, soprava no ar um resto de poeira de farelo. Então, dilatava ainda mais as crateras das ventas, e projetava o beiço de cima, como um focinho de anta, e depois o de baixo, muito flácido, com finas falripas, deixadas, na pele barbeada de fresco. E, como os dois cavos sobre as órbitas eram bem um par de óculos puxado para a testa, Sete-de-Ouros parecia ainda mais velho. Velho e sábio: não mostrava sequer sinais de bicheiras; que ele preferia evitar inúteis riscos e o dano de pastar na orilha dos capões, onde vegeta o cafezinho, com outras ervas venenosas, e onde fazem voo, zumbidoras e mui comadres, mosca do berne, a lucília verde, a varejeira rajada, e mais aquela que usa barriga azul.
ROSA, Guimarães. O burrinho pedrês (trecho). In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
Na obra modernista de Guimarães Rosa, destaca-se o aspecto afetivo na construção de personagens que são animais. No fragmento, esse viés se verifica no(a)