Questão
Sprint ENEM
2021
Fase Única
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Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas — seis da manhã à meia-noite — nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale cio Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais. 

O burrinho permanecia na coberta, teso, sonolento e perpendicular ao cocho, apesar de estar o cocho de-todo vazio. Apenas, quando ele cabeceava, soprava no ar um resto de poeira de farelo. Então, dilatava ainda mais as crateras das ventas, e projetava o beiço de cima, como um focinho de anta, e depois o de baixo, muito flácido, com finas falripas, deixadas, na pele barbeada de fresco. E, como os dois cavos sobre as órbitas eram bem um par de óculos puxado para a testa, Sete-de-Ouros parecia ainda mais velho. Velho e sábio: não mostrava sequer sinais de bicheiras; que ele preferia evitar inúteis riscos e o dano de pastar na orilha dos capões, onde vegeta o cafezinho, com outras ervas venenosas, e onde fazem voo, zumbidoras e mui comadres, mosca do berne, a lucília verde, a varejeira rajada, e mais aquela que usa barriga azul. 

ROSA, Guimarães. O burrinho pedrês (trecho). In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. 

Na obra modernista de Guimarães Rosa, destaca-se o aspecto afetivo na construção de personagens que são animais. No fragmento, esse viés se verifica no(a)
A
rebaixamento do personagem, que se encontra decrépito, mas prova seu valor.
B
rejeição do zoomorfismo naturalista ao dispensar figuras humanas no conto.
C
humanização de Sete-de-Ouros, que se mostra sagaz na percepção do ambiente.
D
adjetivação exacerbada, o que ajuda a construir uma imagem embaçada de Sete-de-Ouros.
E
ironia, porque logo o burrinho aposentado vai ser convocado a participar de uma missão.