𝐒𝐨𝐛𝐫𝐞 𝐩𝐞𝐢𝐱𝐞𝐬 𝐞 𝐥𝐢𝐧𝐠𝐮𝐚𝐠𝐞𝐦 - 𝙼𝚊𝚛𝚌𝚘𝚜 𝙱𝚊𝚐𝚗𝚘
Me ocorre frequentemente a ideia de que nós nos relacionamos com a linguagem assim como os peixes se relacionam com a água. Fora da água, o peixe não existe, toda a sua natureza, seu desenho, seu organismo, seu modo de ser estão indissociavelmente vinculados à água. Outros animais até conseguem sobreviver na água ou se adaptar a ela, como focas, pinguins, sapos e salamandras, que levam uma existência anfíbia. Mas os peixes não: ser peixe é ser na água. Com os seres humanos é a mesma coisa: não existimos fora da linguagem, não conseguimos sequer imaginar o que é não ter linguagem — nosso acesso à realidade é mediado por ela de forma tão absoluta que podemos dizer que para nós a realidade não existe, o que existe é a tradução que dela nos faz a linguagem, implantada em nós de forma tão intrínseca e essencial quanto nossas células e nosso código genético. Ser humano é ser linguagem.
Mas a comparação com o peixe também pode se aplicar a uma outra dimensão da linguagem, que é a única forma como a linguagem realmente adquire existência: a dimensão textual. Abrir a boca para falar, empunhar um instrumento para grafar o que quer que seja, ativar a memória, raciocinar, sonhar, esquecer... todas essas atividades humanas só se realizam como textos. Só tem linguagem onde tem texto. No entanto, por alguma misteriosa razão, os estudos linguísticos durante quase dois milênios desprezaram esse caráter essencialmente textual da linguagem humana. Talvez justamente por ele ser tão íntimo e inevitável quanto respirar, algo que fazemos tão intuitivamente que nunca nos detemos para refletir sobre isso, é que o caráter textual de toda manifestação da linguagem tenha sofrido esse soberano desprezo. E as consequências desse desprezo, para a educação, configuram a tragédia pedagógica que tão bem conhecemos: a redução do estudo da língua, na escola, à palavra solta e à frase isolada.
Uma palavra solta, uma frase isolada são um peixe fora d’água. O texto é o ambiente natural para qualquer palavra, qualquer frase. Fora do texto, a palavra sufoca, a frase estrebucha e morre. E como pode o peixe vivo viver fora da água fria?
A ideia de que uma frase se sustenta sozinha é uma das inúmeras heranças que recebemos da Antiguidade clássica. Mas sabemos que os primeiros estudos sobre a linguagem tinham um caráter eminentemente filosófico, metafísico mesmo, pois os filósofos gregos não tinham preocupações linguísticas propriamente ditas, muito menos preocupações didáticas: o que interessava a eles era descobrir de que maneira (e se é que) a linguagem refletia o funcionamento da alma, que por sua vez (e se é que) refletia o funcionamento do mundo natural, que por sua vez (e se é que) refletia a organização do universo. Para isso, bastava a frase, a sentença isolada, o 𝘢𝘶𝘵𝘰𝘵𝘦𝘭𝘰𝘴 𝘭𝘰𝘨𝘰𝘴, ou seja, o enunciado completo em si mesmo, porque sua estrutura mínima servia aos propósitos da investigação metafísica. O desastre se opera quando essa autossuficiência (suposta) da frase isolada é transferida para os estudos da língua em si mesma e, pior ainda, para o 𝘦𝘯𝘴𝘪𝘯𝘰 da língua. O peixe morto, que pode ser aberto e estripado para se saber o que tem lá dentro, se tornou o objeto do ensino de línguas, quando esse objeto deveria ser o peixe vivo e bulindo, em cardume, dentro de seu ambiente natural, líquido, aquoso: lago, lagoa, riacho, rio, praia, alto-mar –a água-texto. [...]
(𝙿𝚛𝚎𝚏𝚊𝚌𝚒𝚘 𝚍𝚘 𝚕𝚒𝚟𝚛𝚘 𝐴𝑛𝑎𝑙𝑖𝑠𝑒 𝑑𝑒 𝑡𝑒𝑥𝑡𝑜: 𝑓𝑢𝑛𝑑𝑎𝑚𝑒𝑛𝑡𝑜𝑠 𝑒 𝑝𝑟𝑎𝑡𝑖𝑐𝑎𝑠, 𝚍𝚎 𝙸𝚛𝚊𝚗𝚍𝚎 𝙰𝚗𝚝𝚞𝚗𝚎𝚜. 𝙿𝚊𝚛𝚊𝚋𝚘𝚕𝚊 𝙴𝚍𝚒𝚝𝚘𝚛𝚒𝚊𝚕, 𝟸𝟶𝟷𝟶).
Assinale V (verdadeiro) ou F (falso) para a alternativa de acordo com o texto:
Na analogia ao final do texto, há um antítese em que “peixe vivo” representa o estudo da linguagem a partir de textos e “peixe morto” representa o estudo da linguagem que privilegia a palavra solta e a frase isolada.