Médico desempregado
[06/01/1996]
Desemprego não é uma palavra estranha no mundo em que vivemos. Ao contrário, é uma ameaça permanente. Todo mundo que está empregado pode ficar desempregado. Todo mundo? Bem, há certas categorias que se julgam, ou julgavam, ao abrigo desse risco. Médicos, por exemplo. Afinal, a doença nos acompanha desde a aurora da humanidade. E, enquanto pessoas ficarem doentes, os médicos terão trabalho.
Bem, nem sempre, como descobriu o dr. Alfred E. Stillman, um gastroenterologista e professor universitário norte-americano. Como muitos médicos dos Estados Unidos, ele tinha uma vida confortável, inclusive porque a esposa, também médica, exercia um cargo administrativo: dois salários, portanto, e bastante bons. Uma confortável vida de classe média, que de repente foi interrompida: o dr. Stillman foi despedido da clínica em que trabalhava.
O que aconteceu depois ele conta num artigo publicado no New England Journal of Medicine. É um texto inusitado, nesta sóbria revista médica; inusitado e eloquente.
A primeira reação do dr. Stillman foi de raiva. Como poderiam despedi-lo, a ele, um profissional tão bem qualificado? Impossível. Assim, a segunda reação foi de negação: ele continuou frequentando o serviço onde trabalhava, fazendo reuniões com residentes e estudantes. Logo depois, contudo, descobriu que se transformara em persona non grata, uma não entidade: sociedades competitivas não toleram os fracassados. Os colegas não apenas o evitavam, como também não o convidavam para mais nada. E aí veio a depressão. Logo o dr. Stillman deu-se conta de que sua leitura habitual já não eram os textos médicos, mas sim o guia da TV. A esposa, que conseguira um precário emprego, esforçava-se por arrancá-lo do desânimo, insistindo que ele se vestisse e saísse.
A história tem um final feliz, ou semifeliz. O dr. Stillman conseguiu um outro emprego, mas desta vez como clínico geral. Teve de se reciclar, o que, segundo diz, foi um prazer.
Não é um caso isolado, o do dr. Stillman. Nos Estados Unidos, sempre houve relativa carência de médicos; o relatório Flexner, do começo do século, mostrou que numerosas faculdades de medicina não tinham condições de formar bons profissionais, com o que a maioria foi fechada. Mas funcionou a lei de mercado, o número de faculdades cresceu, e agora a oferta de médicos já supera a demanda. E isto está acontecendo em muitos outros países.
Em Israel, onde o número de médicos emigrantes (da Rússia, por exemplo) é imenso, contaram-me uma história bem ilustrativa. Numa repartição pública, uma funcionária caiu e fraturou a perna. Na confusão que se seguiu, quem assumiu o comando foi a faxineira, que imobilizou o membro e orientou sobre o que tinha a ser feito. Como é que você sabe dessas coisas?, perguntou o chefe, admirado.
— Na Rússia eu era traumatologista — foi a resposta.
Um destino do qual o dr. Stillman foi poupado. Pelo que ele pode se considerar duplamente feliz.
(Moacyr Scliar. Território da emoção. Companhia das Letras, 2013.)
Com relação à construção de sentidos, no trecho “Um destino do qual o dr. Stillman foi poupado. Pelo que ele pode se considerar duplamente feliz”, que fecha o texto, há