Não, não somos macacos. Somos humanos!
A campanha "somos todos macacos" lançada por Neymar num gesto de solidariedade ao lateral Daniel Alves - vítima de uma agressão racista na partida do Barcelona contra o Villarreal - virou moda: da Presidente Dilma Rousseff a artistas globais como o apresentador Luciano Huck, passando pelo senador Suplicy, que se deixou fotografar comendo uma banana.
Trata-se, porém, do velho "jeitinho brasileiro", o deixa para lá com que estamos acostumados a empurrar historicamente para debaixo do tapete - ou com a barriga - as nossas piores mazelas, como o racismo, por exemplo, crime considerado pela própria Constituição inafiançável e imprescritível.
Não, não "somos todos macacos"! [...] Ao contrário: somos humanos, seres humanos e devemos afirmá-lo para nos contrapor de forma consequente ao racismo e à xenofobia. É o racismo que recusa a nossa humanidade ao nos negar direitos básicos, a nossa condição humana, iguais na diferença.
Ao fazê-lo, os racistas se tornam a expressão do que há de mais retrógrado, mais desumano, pois renegam uma verdade que a ciência já consagrou: só existe uma raça, a raça humana.
O racismo nos desumaniza e degrada. Por isso, os racistas nos atiram "bananas", para afirmarem a nossa desumanidade, nos lembrando que ocupamos uma posição inferior na escala evolutiva - símios e não homens, ainda que também seja verdade científica consagrada por Charles Darwin, que também somos mamíferos e primatas como os macacos.
Contrapor a agressão com esse tipo de resposta é não dar o peso nem a medida adequados a um ato criminoso. Se somos todos macacos, elimina-se a responsabilidade do agressor, generalizando-se a agressão. No lugar de punir o criminoso, naturaliza-se o crime. Se somos todos macacos, não há mais crime.
Não é porque Neymar decidiu manifestar solidariedade ao companheiro de clube da forma como lhe pareceu melhor, que devemos aderir a mais esse modismo que cai como uma luva na tradição brasileira de não encarar de frente problemas sérios, lançando mão do "jeitinho" tão entranhado na nossa cultura. [...]
É muito comum que jogadores negros se mostrem absolutamente despreparados para enfrentar esse tipo de agressão. Desarmados, em geral, sucumbem à vitimização paralisante. Há os que se abatem como aconteceu com Tinga, outros choram como o juiz também agredido por bananas deixadas em seu carro, após um jogo do campeonato gaúcho. Isso quando não reagem como Pelé, que já declarou ser normal nos estádios o uso da expressão "macaco" dirigida a negros.
A agressão racista normalmente pega a vítima desprevenida, e isso acontece porque, no Brasil, todos nascemos e crescemos sob o mito da democracia racial, a ideia de que esse problema não existe por aqui. As reações refletem o despreparo. É como você estar em um local público e, de repente, ser atacado com um insulto ou um soco no rosto por um estranho. A primeira reação é a passividade assustada. O inesperado paralisa.
Diante da agressão, Daniel Alves - ainda que por impulso - tomou uma atitude: descascou e comeu a fruta, o que soou como uma resposta irônica e de grande repercussão na mídia e nas redes sociais pelo inusitado.
Os aplausos ao gesto, porém, não refletem a consciência da gravidade do problema, especialmente quando se sabe que há certos setores na sociedade brasileira que, ao invés de assumir a luta pela superação do racismo, preferem a maquiagem midiática e frases de efeito que desaparecerão tão rapidamente como surgiram.
Atitudes, contudo, não podem se limitar às vítimas, quase sempre despreparadas. O Poder Público, vale dizer, o Estado, precisa avançar para a adoção de uma educação antirracista - da pré-escola às universidades. Um país que viveu por quase 400 anos sob regime de escravidão negra, não se livra dessa herança em apenas 126 anos de Abolição, como, aliás, já prevenira Joaquim Nabuco. [...]
E o movimento social vive fazendo reuniões para "discutir a implementação da Lei 10.639", como se as leis, uma vez aprovadas pelo Legislativo e sancionadas pelo Executivo, não devessem ser automaticamente cumpridas e precisassem ser discutidas pelos interessados. Afinal, somos também, como se sabe, o "país do faz de conta".
Temos um Estatuto da Igualdade Racial - a Lei 12.288/2010 - que se tornou uma declaração de boas intenções e é igualmente ignorada. E temos ainda a situação presente, cotidiana, do negro como suspeito padrão, alvo das balas da polícia, candidato a "morar longe" e morrer mais cedo, como demonstram todas as estatísticas, inclusive as seguidas edições do Mapa da Violência.
Então, por melhores que sejam as intenções de Neymar e dos que aderiram à campanha por ele lançada - inclusive a Presidente da República - é preciso que se diga: não, não é esse o caminho para enfrentar uma patologia social como o racismo, uma chaga que contamina todo o tecido social e é um dos elementos estruturantes da desigualdade social.
Aliás, e não por acaso, a desigualdade por aqui, entra governo e sai governo, também não muda: ocupamos o desonroso quarto lugar entre os 10 países de maior desigualdade do planeta.
VIEIRA, Dojival. Não, não somos macacos. Somos Humanos! Afropress. Disponível em: <http://www.brasilpost.com.br/dojival-vieira/nao-nao-somos-macacos-somoshumanos_b_5229926.html>. Acesso em 01 jul. 2014. (Fragmento Adaptado)
Quanto ao texto “Não, não somos macacos. Somos humanos!”, marque a alternativa CORRETA.