Questão
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
2003
Fase Única
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Ode Triunfal

Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa – 1888–1935)

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –

Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –

Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,

Porque o presente é todo o passado e todo o futuro

E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas

Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,

E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,

Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,

Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,

Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

(Fernando Pessoa, Obra Poética)

Em “Ode triunfal”, escrita no momento aflitivo de 1914, parece que o transe dos tempos modernos, representado pelas máquinas em fúria, se mistura com o transe febril do eu-poemático. Cria-se um ambiente em que, talvez na dimensão do sonho (ou do pesadelo), o tempo e o espaço parecem dissolvidos, ou situados numa região mítica. Nessa dimensão surrealista, Platão e Virgílio residem dentro das máquinas; há, nelas, pedaços de Alexandre Magno, do século talvez cinquenta, além de Ésquilo, do século cem. Tal embaralhamento temporal de figuras históricas já se enunciara nos versos
A
À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica / Tenho febre e escrevo.
B
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno! / Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
C
De expressão de todas as minhas sensações, / Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
D
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, / Porque o presente é todo o passado e todo o futuro.
E
De vos ouvir demasiadamente de perto, / E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso.