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Paletó? Estou louco? Queimei o paletó no incinerador de lixo. As cinzas não desceram, o escoadouro estava entupido. O dia nublado. Se ao menos fosse chuva. Fico com a boca seca de pensar na possibilidade de uma chuva. Uma garoinha leve que molhasse tudo, umedecesse a terra, me encharcasse.
As secas definitivas vieram logo após o grande deserto amazônico. Um ano sem gota de água e as represas de São Paulo se esgotaram. Apavorado, o povo fazia promessas, enchia as igrejas. Organizavam procissões, novenas, romarias. Inúteis. Poços artesianos começaram a ser abertos às pressas, às centenas.
Por muito tempo, a secretaria de obras trabalhou em poços. Todas as verbas foram desviadas para os programas de água. Cada estado contou consigo, não havia possibilidade de ajudar o outro. O problema era igual para todos, estavam à beira da calamidade. Charlatões, fazedores de chuva, enriqueceram.
As chuvas não vieram. De nada adiantaram procissões, rezas, trezenas, missas, macumbas. Padres gritaram no púlpito que tinha chegado o juízo final. Parlamentares denunciaram o Esquema no congresso. Tanto padres e políticos tiveram de se calar sob pena de aplicação do Definitivo Julgamento.
Onde será que foi minha mulher? Para a casa da mãe, decerto. Um dia desses, passo por lá. Bom, féria conjugal faz bem. E a faxineira? Devia ser dia dela vir. Ou foi ontem? Estava tudo tão arrumado. Caminhei para o escritório ao sair do ônibus. Maquinal, nem percebi. Fiquei à espera do elevador.
O ascensorista me olhou, amedrontado. Seu rosto se refletia nos espelhos enfumaçados do elevador, imagem reproduzida ao infinito. Não nítida, toda sombreada, apenas um esboço do rosto. E eu vi milhares de rostos aterrados me contemplando. O ascensorista não sabia que atitude tomar.
– Está lotado!
– Lotado? Como? Está vazio!
– Vazio, mas reservado.
– Desde quando se reserva elevador?
– Me avisaram que o senhor não trabalha mais aqui. Deram ordens para não deixá-lo subir.
– Você me conhece, não fiz nada de mal.
– Para mim o senhor era até boa pessoa. Não... não é mais...
– Não sou mais?
– É... o senhor sabe... tem quem mande... tem quem diz as coisas como devem ser... [...]
Brandão, Ignácio de Loyola. Não verás país nenhum. 1a. ed. digital. São Paulo: Global, 2012. (Excerto das páginas 77 e 78).
Sobre o fragmento do romance de Ignácio de Loyola Brandão, analise as asserções a seguir.
I - O autor recorre à variante coloquial para tornar o texto próximo à conversa cujo objetivo é aproximar o narrador-personagem do leitor.
II - O excerto apresenta discurso direto e indireto.
III - No trecho “se ao menos fosse chuva. Fico com a boca seca de pensar na possibilidade de uma chuva. Uma garoinha leve que molhasse tudo, umedecesse a terra, me encharcasse”, a flexão verbal no subjuntivo, em destaque, revela que a chuva é uma possibilidade distante que frustra o personagem.
IV - O fragmento “seu rosto se refletia nos espelhos enfumaçados do elevador, imagem reproduzida ao infinito. Não nítida, toda sombreada, apenas um esboço do rosto. E eu vi milhares de rostos aterrados me contemplando”, reforça o caráter conotativo da linguagem literária que torna o texto com várias possibilidades de leitura.
V- Ao abordar sobre o dia nublado, o narrador revela a falta de chuva como um problema de todo o país. De repente, no entanto, ele pergunta “onde será que foi minha mulher?” Ou seja, muda de assunto, que é característica da modalidade oral da língua.
Pela leitura e análise das afirmações anteriores, conclui-se que: