Pela ampla janela entra o barulho da manhã na cidade e sai o das máquinas de escrever da antessala.
ABELARDO I, ABELARDO II e o CLIENTE
ABELARDO I (Sentado em conversa com o Cliente. Aperta um botão, ouve-se um forte barulho de campainha.)
— Vamos ver...
ABELARDO II (Veste botas e um completo de domador de feras. Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos. Monóculo. Um revólver à cinta.) — Pronto Seu Abelardo.
ABELARDO I — Traga o dossiê desse homem.
ABELARDO II — Pois não! O seu nome?
CLIENTE (Embaraçado, o chapéu na mão, uma gravata de corda no pescoço magro.) — Manoel Pitanga de Moraes.
ABELARDO II — Profissão?
CLIENTE — Eu era proprietário quando vim aqui pela primeira vez. Depois fui dois anos funcionário da Estrada de Ferro Sorocabana. O empréstimo, o primeiro, creio que foi feito para o parto. Quando nasceu a menina...
ABELARDO II — Já sei. Está nos IMPONTUAIS. (Entrega o dossier reclamado e sai.)
ABELARDO I (Examina) — Veja! Isto não é comercial, seu Pitanga! O senhor fez o primeiro empréstimo em fins de 29.Liquidou em maio de 1931. Fez outro em junho de 31, estamos em 1933. Reformou sempre. Há dois meses suspendeu o serviço de juros... Não é comercial...
O CLIENTE — Exatamente. Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada, com a Revolução de 30. A primeira foi para o parto. A criança já tinha dois anos. E a Revolução em 30... Foi um mau sucesso que complicou tudo...
ABELARDO I — O senhor sabe, o sistema da casa é reformar. Mas não podemos trabalhar com quem não paga juros... Vivemos disso. O senhor cometeu a maior falta contra a segurança do nosso negócio e o sistema da casa...
O CLIENTE — Há dois meses somente que não posso pagar juros.
ABELARDO I — Dois meses. O senhor acha que é pouco?
O CLIENTE — Por isso mesmo é que eu quero liquidar. Entrar num acordo. A fim de não ser penhorado. Que diabo! O senhor tem auxiliado tanta gente. É o amigo de todo mundo... Por que comigo não há de fazer um acordo?
ABELARDO I — Aqui não há acordo, meu amigo. Há pagamento!
ANDRADE, Oswald. O Rei da Vela. São Paulo: Globo, 2003. p. 39-40.
O fragmento destacado da obra “O Rei da Vela”