“Pelo quarto parecia-lhe estarem a se cruzar os elétricos, a estremecerem-lhe a imagem refletida. Estava a se pentear vagarosamente diante da penteadeira de três espelhos, os braços brancos e fortes arrepiavam-se à frescurazita da tarde. Os olhos não se abandonavam, os espelhos vibravam ora escuros, ora luminosos. Cá fora, duma janela mais alta, caiu à rua uma coisa pesada e fofa. Se os miúdos e o marido estivessem à casa, já lhe viria à ideia que seria descuido deles. Os olhos não se despregavam da imagem, o pente trabalhava meditativo, o roupão aberto deixava aparecerem nos espelhos os seios entrecortados de várias raparigas. ‘A Noite!’, gritou o jornaleiro ao vento brando da Rua do Riachuelo, e alguma coisa arrepiou-se pressagiada. Jogou o pente à penteadeira, cantou absorta: “quem viu o par-dal-zito... passou pela janela... voou pr’além do Mi-nho! – mas, colérica, fechou-se dura como um leque.”
LISPECTOR, C. Devaneio e embriaguez duma rapariga, In: Laços de família.
A partir da leitura do fragmento acima do conto de Clarice Lispector, percebemos um uso de linguagem cujo trabalho se caracteriza