QUANDO A QUARENTENA ACABAR
Quando a quarentena acabar, a gente vai passar um mês na praia com as crianças. Quando a quarentena acabar, a gente vai viajar sem as crianças, pelo amor de Deus. Quando a quarentena acabar, eu vou acampar durante uma semana dentro de uma churrascaria rodízio – só vou no bufê de salada domingo à noite.
(...) Quando a quarentena acabar, estranhos se abraçarão nas ruas. Quando a quarentena acabar, ninguém mais vai apertar a mão de ninguém. Este vai ser o novo normal quando a quarentena acabar. Quando a quarentena acabar ninguém mais falará “o novo normal”, porque neste anormal “novo normal” da quarentena a gente ouve “o novo normal” dezessete mil novecentas e trinta e duas vezes por dia. Palavras outrora inofensivas como “rebanho”, “pico”, “achatamento”, “curva” e “máscara” ainda farão tilintar tristes sinapses décadas depois de a quarentena acabar.
(...) Gustavo, quando a quarentena acabar, a gente vai correr no Minhocão todo domingo. Fabrício, quando a quarentena acabar, a gente vai comer nirá*¹ e bardana*² numa calçada da Liberdade. Mattoso, quando a quarentena acabar, a gente vai escrever um longa. Paulinho, quando a quarentena acabar, eu serei um padrinho mais presente pro Valentim. Dinho, quando a quarentena acabar, eu vou fazer um jantar pros seus pais, em agradecimento a tudo o que eles fizeram por mim na adolescência. Sim, Oli e Dani, a gente vai ver as girafas no zoológico quando a quarentena acabar. Sim, a gente pode convidar a Rita e a Ceci. E o Tugo e o Teo. E o Lucas e a Nina. E a Luisa. A Lulu. A Coca. A Ana e o Luca. A vovó Tuni. A vovó Marta. A vovó Lena. A gente aluga uma van. Ou duas.
Quando a quarentena acabar eu não vou mais escrever essas crônicas preguiçosas que repetem uma frase e só mudam o finalzinho, que nem música ruim da MPB. Quando a quarentena acabar eu vou compor uma sinfonia, escrever um romance, correr uma maratona e me formar em filosofia. Ao mesmo tempo.
(...) Opa, acabou a quarentena? Vamos! Vou! Já! Muito! Espera, deixa só responder esses e-mails, espera, tenho que acabar este roteiro, espera, tem que comprar óleo de soja, espera, tem que pagar o boleto do condomínio, espera, Sesc Belenzinho? Mesmo? Lá longe? E se a gente ficasse em casa e visse uma série na Netflix? A gente pede uma pizza. Ou faz um ovo. Não sobrou miojo do almoço?
*¹- cebolinha ou alho japonês
*²- planta medicinal
Acesso em: www1.folha.uol.com.br. Acesso em: 19/07/2021.
Nessa crônica, a repetição da estrutura sintática “Quando a quarenta acabar...” contribui para a construção do sentido do texto,