Razão contra Sandice
Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:
La maison est à moi, c’est à vous d’en sortir*.
Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez, outras durante a suas estações calmosas, concluiremos que essa amável peregrina é o terror dosproprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sótão.
⎯ Não, Senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.
⎯ Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério...
⎯ Que mistério?
⎯ De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.
A Razão pôs-se a rir.
⎯ Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa...
E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando...
*La maison est à moi, c’est à vous d’en sortir: frase do Tartufo, de Moliére, que significa “A casa é minha, e vós é que deveis sair”.
(ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 3 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p. 84 -5.)
Com base no texto, considere as afirmativas a seguir.
I. Segue-se ao capítulo “Delírio”, em que Brás Cubas faz uma viagem através do sonho até o início da humanidade, momento em que fica clara a marcação do tempo psicológico, comum a todo romance.
II. Ao mostrar a superioridade da Razão sobre a Sandice, deixa evidente o caráter romântico do romance de Machado de Assis, sustentado pelo pensamento positivista e pelas correntes cientificistas do final do século XIX.
III. Pode ser visto como um dos momentos em que o romance se refere ao fazer artístico, uma vez que a alegoria da Razão e da Sandice transforma-se em uma crítica ao domínio da razão sobre a fantasia na arte realista.
IV. Razão e Sandice são duas personagens do romance que voltam a aparecer no final da narrativa, quandoo personagem Quincas Borba, já louco, expõe a Brás Cubas sua filosofia Humanitista.
Estão corretas apenas as afirmativas: