(SOMATÓRIA)
O Lemos não estava a gosto; tinha perdido aquela jovialidade saltitante, que lhe dava um gracioso ar de pipoca. Na gravidade desusada dessa conferência, ele, homem experiente e sagaz, entrevia sérias complicações.
Assim era todo ouvidos, atento às palavras da moça.
— Tomei a liberdade de incomodá-lo, meu tio, para falar-lhe de objeto muito importante para mim.
— Ah! muito importante?... repetiu o velho batendo a cabeça.
— De meu casamento! disse Aurélia com a maior frieza e serenidade. [...] — Já sei! Deseja que eu aponte alguém... Que eu lhe procure um noivo nas condições precisas... Ham!... É difícil... um sujeito no caso de pretender uma moça como você, Aurélia? Enfim há de se fazer a diligência!
— Não precisa, meu tio. Já o achei! [...]
— Sr. Lemos, disse a moça pausadamente e transpassando com um olhar frio a vista perplexa do velho; completei dezenove anos; posso requerer um suplemento de idade mostrando que tenho capacidade para reger minha pessoa e bens; com maioria de razão obterei do juiz de órfãos, apesar de sua oposição, um alvará de licença para casar-me com quem eu quiser. Se estes argumentos jurídicos não lhe satisfazem, apresentar-lhe-ei um que me é pessoal.
— Vamos a ver! acudiu o velho para quebrar o silêncio.
— É a minha vontade. O senhor não sabe o que ela vale, mas juro-lhe que para a levar a efeito não se me dará de sacrificar a herança de meu avô.
— É próprio da idade! São ideias que somente se têm aos dezenove anos; e isso mesmo já vai sendo raro.
— Esquece que desses dezenove anos, dezoito os vivi na extrema pobreza e um no seio da riqueza para onde fui transportada de repente. Tenho as duas grandes lições do mundo: a da miséria e a da opulência. Conheci outrora o dinheiro como um tirano; hoje o conheço como um cativo submisso. Por conseguinte devo ser mais velha do que o senhor que nunca foi nem tão pobre, como eu fui, nem tão rico, como eu sou.
ALENCAR, J. de. Ficção completa e outros escritos. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1965. v. 1, p. 673-674. (Biblioteca Luso-Brasileira. Série Brasileira).
Em relação ao fragmento transcrito e considerando-se a leitura da obra, é correto afirmar:
(01) O diálogo entre Lemos e Aurélia revela a influência decisiva do dinheiro nas relações sociais do contexto evidenciado no romance.
(02) A última fala de Aurélia antecipa, na trama romanesca, seu perfil prepotente, egoísta e manipulador.
(04) Ao retrucar “Já sei! Deseja que eu aponte alguém... Que eu lhe aponte um noivo nas condições precisas...”, Lemos reage com coerência, tendo em vista a concepção do casamento como transação comercial na sociedade focalizada na narrativa.
(08) A segurança dos argumentos utilizados por Aurélia para atingir seus objetivos atende à expectativa do seu tio.
(16) Ao dizer “É a minha vontade”, Aurélia afirma a força subjetiva de seu desejo de vingança contra Seixas, o que evidencia um traço do Romantismo.
(32) O conhecimento das normas vigentes nas operações jurídicas e comerciais era habitual nas ricas herdeiras da época.
(64) Aurélia demonstra consciência da maturidade adquirida através de sua variada experiência de vida.