SOMATÓRIA
“O nosso primeiro natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.”
ANDRADE, M. Contos novos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 91.
01) O conto focaliza a superação do luto de uma família em razão da morte de seu patriarca. Isso ocorre por meio da atuação do filho, considerado o louco da família, que reinventa o modelo familiar de comemoração do Natal: no lugar do roteiro tradicional (presença opressora do pai, castanhas, figos, passas e Missa do Galo), acontece uma ceia farta com generosas fatias de peru servidas com todas as honras às mulheres da casa.
02) O narrador, no fragmento, refere-se ao “sentido muito abstrato de felicidade” vivenciado pela família enquanto o pai era vivo. Ele não pretende dar continuidade a esse sentido, nem permitir que a sua família o perpetue.
04) A memória do pai morto cinco meses antes é solenemente cultuada durante a ceia de Natal, apesar das tentativas do narrador em maculá-la, trazendo à tona condutas que concorriam para desaboná-la.
08) A presença do pai nas ceias de Natal em família poderia ser interpretada como alicerçada nos fundamentos do tradicional espírito natalino, em que mais importantes do que a mesa farta são os valores éticos e morais a serem estimulados nos convivas.
16) O narrador-protagonista revela à família, a pretexto de sua fama de louco, o ambiente de hipocrisia em que estiveram mergulhados até a morte do pai. Ao praticar a solidariedade familiar e externar o afeto em gestos simples, como o de servir as mulheres (acostumadas a servir os outros), ele desnuda os clichês socioculturais que lhes marcavam as relações.