Questão
Prova de Seleção - Medicina
2021
Fase Única
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‘Sociedade paliativa’: o modo contemporâneo de lidar com a dor

Byung-Chul Han
14 de Maio de 2021

Hoje impera por todo lugar uma algofobia, uma angústia generalizada diante da dor. Também a tolerância à dor diminui rapidamente. A algofobia tem por consequência uma anestesia permanente. Toda condição dolorosa é evitada. Tornam-se suspeitas, entrementes, também as dores de amor. A algofobia se prolonga no social. Conflitos e controvérsias que poderiam levar a confrontações dolorosas têm cada vez menos espaço. A algofobia se estende também à política. A coação à conformidade e a pressão por consenso crescem. A política se orienta em uma zona paliativa e perde toda vitalidade. A “falta de alternativa” é um analgésico político. O “centro” difuso atua paliativamente. Em vez de debater e lutar pelos melhores argumentos, entregamo-nos à compulsão por sistema. Uma pós-democracia se anuncia. Ela é uma democracia paliativa. Por isso, Chantal Mouffe demanda uma “política agonística”, que não evita confrontações dolorosas. A política paliativa não é capaz de visões ou de reformas penetrantes. Ela prefere tomar analgésicos de curto efeito, que apenas aceleram disfunções e rejeições. A política paliativa não tem nenhuma coragem para a dor. Desse modo, o igual avança.

Há uma mudança de paradigma no fundamento da algofobia atual. Vivemos em uma sociedade da positividade, que busca se desonerar de toda forma de negatividade. A dor é a negatividade pura e simplesmente. Também a psicologia segue para essa mudança de paradigma e passa, de psicologia negativa como “psicologia do sofrimento”, para a “psicologia positiva”, que se ocupa com o bem-estar, a felicidade e o otimismo. Eles devem ser substituídos imediatamente por pensamentos positivos. A psicologia positiva submete a própria dor a uma lógica de desempenho. A ideologia neoliberal da resiliência transforma experiências traumáticas em catalisadores para o aumento do desempenho. Fala-se até do crescimento pós-traumático. O treino de resiliência como treino de resistência espiritual tem de formar, a partir do ser humano, um sujeito de desempenho permanentemente feliz, o mais insensível à dor possível.

A missão de felicidade da psicologia positiva e a promessa de um oásis de bem-estar medicamente produzível são irmanadas. A crise de opioides estadunidense tem [um] caráter paradigmático. Dela toma parte não apenas a cobiça material de uma empresa farmacológica. Antes há, em seu fundamento, uma suposição fatal para a existência humana. Só uma ideologia do bem-estar permanente pode levar a que medicamentos que eram originariamente usados na medicina sejam usados com grande pompa também nos saudáveis. Não por acaso o especialista em dor David B. Morris já notava, décadas atrás: “Os americanos de hoje pertencem, provavelmente, à primeira geração da Terra que veem uma existência livre de dor como um direito constitucional. Dores são um escândalo”.

A sociedade paliativa coincide com a sociedade do desempenho. A dor é vista como um sinal de fraqueza. Ela é algo que deve ser ocultado ou ser eliminado por meio da otimização. Ela não é compatível como desempenho. A passividade do sofrer não tem lugar na sociedade ativa dominada pelo poder. Hoje se remove à dor qualquer possibilidade de expressão. Ela é, além disso, condenada a calar-se. A sociedade paliativa não permite avivar, verbalizar a dor em uma paixão.

A sociedade paliativa é, ademais, uma sociedade do curtir. Ela degenera em uma mania de curtição. Tudo é alisado até que provoque bem-estar. O like é o signo, sim, o analgésico do presente. Ele domina não apenas as mídias sociais, mas todas as esferas da cultura. Nada deve provocar dor. Não apenas a arte, mas também a própria vida tem de ser instagramável, ou seja, livre de ângulos e cantos, de conflitos e contradições que poderiam provocar dor. Esquece-se que a dor purifica. Falta, à cultura da curtição, a possibilidade da catarse. Assim, sufocamo-la com os resíduos da positividade, que se acumulam sob a superfície da cultura de curtição.

(...) 

A cultura da curtição tem múltiplas causas. Ela remonta, primeiramente, à economificação e à comodificação da cultura. Os produtos culturais se encontram cada vez mais fortemente sob a coação do consumo. Eles têm de tomar uma forma que os torne consumíveis, ou seja, curtíveis. Essa economificação da cultura acompanha a culturificação da economia. Bens econômicos são dotados de mais-valia cultural. Eles prometem vivências culturais, estéticas. Assim, o design se torna mais importante do que o valor de uso. A esfera do consumo penetra a esfera da arte. Assim, as esferas da arte e do consumo se misturam o que tem por consequência que, agora, a arte se vale da estética do consumo. Ela se torna curtível. Economificação da cultura e culturificação da economia se fortalecem reciprocamente. É desfeita a separação entre cultura e comércio, entre arte e consumo, entre arte e propaganda. Artistas se encontram, eles mesmos, sob a coação de se estabelecerem como marcas. Eles se tornam conformes ao mercado e curtíveis. A culturificação da economia também afeta a produção. A produção pós-industrial, imaterial, apropria-se das formas de práxis artística. Ela tem de ser criativa. A criatividade como estratégia econômica permite, porém, apenas variações do igual. Ela não tem nenhum acesso ao inteiramente outro. Falta a ela a negatividade da ruptura, que dói. Dor e comércio se excluem reciprocamente.

(Adaptado de < https://www.nexojornal.com.br/estante/trechos/2021/05/14/%E2%80%98Sociedade-paliativa%E2%80%99-o-modo-contempor%C3%A2neo-de-lidar-com-a-dor> Acesso em 20 mai. 2021

Assinale a alternativa em que o termo em destaque assume função de adjunto adverbial.
A
Toda condição dolorosa é evitada.
B
A política paliativa não tem nenhuma coragem para a dor.
C
A sociedade paliativa coincide com a sociedade do desempenho.
D
A esfera do consumo penetra a esfera da arte.
E
A dor é a negatividade pura e simplesmente.