Questão
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Norte de Minas Gerais - IFNMG
2017
Fase Única
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TEXTO 01

BARBÁRIE e TERROR, ou, a "conta" chegou (texto adaptado)

* Alexandre Quaresma e **J. Bamberg

Antes de qualquer coisa, é preciso algumas ponderações estruturais que, a partir deste instante, servirão de fundamentações e premissas para as nossas reflexões. A primeira delas é um tanto quanto óbvia, mas, ainda assim, merece ser mencionada. Desde os tempos mais antigos, que remontam à própria origem da vida gregária humana na Terra, nós percebemos que o enfrentamento da realidade circundante se tornaria mais eficiente e prático se fosse encarado grupalmente, no que poderíamos chamar de trabalho conjunto. (...).

O bom selvagem, para poder abandonar sua condição de plenitude animal – como nos ensinou Jean Jacques Rousseau – e se adaptar à vida gregária, precisou abdicar dessa autonomia e liberdade, animal e instintiva, e passar a seguir rigorosamente o Contrato social, sob pena de ser punido ou expurgado do próprio sistema societal que, pouco a pouco, se constituía. E, como ser humano é ser complexo, contraditório e diverso, faz-se necessário, fundamentalmente, lograr êxito em tolerar o outro (ou os outros), bem como suas complexidades, contradições e diferenças. Mesmo porque, sem isso, restaria apenas a barbárie. Pois, como Thomas Hobbes sabiamente detectou, antes da socialização, os seres humanos viviam numa eterna guerra de todos contra todos, o que, convenhamos, reduz e muito as chances de sobrevivência e permanência, seja do indivíduo, seja da espécie. Nossos ancestrais descobriram que enfrentar o mundo que os circunscrevia seria muito mais fácil e eficiente se o fizessem em grupo.

Todavia, se por um lado essa nova dinâmica grupal trouxe inquestionáveis benefícios, por outro também exigiu um enorme esforço e dedicação psicossocial da própria espécie. Mas, não nos enganemos, pois as contradições entre o animal humano selvagem e o humano social civilizado persistem e nos desafiam até os dias atuais. (...): é impossível tentar argumentar racionalmente com alguém que coloca um cinto de explosivos no próprio corpo e parte fortemente armado para ações terroristas suicidas, pois ele crê firmemente que está fazendo o correto, ainda que esteja sendo ostensivamente manipulado, seja raso de raciocínio, tenha sofrido lavagem cerebral ou qualquer outra coisa que o valha, pois, ao fim e ao cabo, o resultado sinistro final será o mesmo: o terror da barbárie, a banalização da vida humana e a degradação da própria humanidade.

Além disso, é preciso compreender também que esse momento histórico delicado que vivemos é o reflexo, um exsudato de um processo de colonização brutal, que remonta, em primeiro momento, a diversas culturas, e, em dimensão maior, ao Império Romano e ao colonialismo recente, que põe seus pés e suas garras na África e Oriente Médio, com a Guerra Santa, e, a posteriori, com as demais conquistas de terras e povos, que vão alimentar a futura Renascença, bem como às ocupações que têm seu ápice em todo o século XIX, num contexto renominado como Mercado Capitalista. E se o Velho Mundo está preocupado – como pretenderiam alguns -, pode-se dizer que está justamente pelos retornados desse mesmo processo de ocupação colonial que ele mesmo, outrora, iniciou. Ou seja, ao que tudo indica a "conta" finalmente chegou.

A nossa história pregressa é muito clara quanto a isso: violência gera violência, que gera mais violência, e assim por diante. E mais (...). Quando o outro – por ser diferente e ter suas crenças e seus credos também diferenciados – passa a ser um problema, uma alteridade insuportável, um inimigo a ser combatido (...); quando a fraternidade e a humanidade não podem ser ouvidas pela rudeza dos corações surdos e pelo amargor das almas agônicas a se digladiar; e, principalmente, quando exigimos que esse outro seja igual a nós, impositivamente, arbitrariamente, incondicionalmente: surgem então o terror, a barbárie, o genocídio".

GLOBALIZAÇÃO DE QUÊ E PARA QUEM

Tudo isso (...) diz respeito também a essa globalização sectarista e extremamente parcial que aí está, cultuada pela mídia como um avanço civilizatório da humanidade, que só globaliza de fato o livre trânsito de capitais financeiros e corporações, mas que não o faz com as pessoas comuns – especialmente as menos privilegiadas -, que são ostensivamente impedidas de transitar entre as fronteiras dos países, e que encontram enormes dificuldades e empecilhos para ir e vir, e ainda arriscam suas vidas – já despedaçadas, desestruturadas e completamente destruídas (...). Porém, o que não se menciona é que o Velho Mundo tem uma dívida moral perante os desesperados que buscam uma vida melhor no interior desse mesmo império construído às custas deles. (...).

ENCRUZILHADA CIVILIZACIONAL

Encontramo-nos numa encruzilhada, (...), restam apenas duas grandes opções (...) para a superação da atual crise. (...): mudarmos o nosso paradigma egoísta e beligerante, e, através de uma ação coordenada globalmente, iniciarmos um novo ciclo de ações inteligentes e estratégicas para combater as causas, e não apenas os efeitos, por meio de um círculo virtuoso e humanístico, onde pudéssemos enxergar e compreender o outro (...), como um ser humano complexo, contraditório e diferente de nós.(...)

E QUANTO A NÓS?

E, nessa linha de raciocínio e argumentação, barbárie por barbárie, nós ocidentais e pretensamente civilizados, também fizemos as nossas, e elas foram tão brutais quanto essas que criticamos, ou mais. Qual a diferença entre o massacre, dizimação e destruição de culturas ameríndias da América do Sul ou do Norte, o holocausto nazista, as decapitações e mortes na fogueira da santíssima inquisição cristã, as degolas da Revolução Francesa e os atos brutais dos extremistas? Do ponto de vista humanístico, absolutamente nenhuma. (...).

O mesmo vale para a atual crise dos refugiados que fogem para a Europa, fato que se relaciona diretamente com o caos insuportável de seus países de origem, crises locais estas que, indubitavelmente, têm conexões claras com a indústria da guerra, cujas armas foram fabricadas nesse mesmo Ocidente pretensamente civilizado que agora se vê barbarizado e perplexo, contexto que está ligado à desigualdade, à concentração de renda, ao desrespeito recorrente dos direitos difusos da humanidade (...).

Numa só palavra: temos um problema global nas mãos. (...), precisamos mudar a nossa relação com a natureza, que já dá sinais claros de fadiga, (...): precisamos rever a própria globalização, no sentido dessa globalização alcançar e incluir a ampla maioria da coletividade humana. (...) e a velocidade que nos mobilizamos é tal, que já agimos como um grande e onisciente organismo cibernético global. E é justamente por esse conjunto de fatores e muitos outros mais (...), que a crise na Síria, país situado num outro continente tem tudo a ver comigo, com você e com todos, ainda que seja mais visível e sensibilizante presencialmente e in loco do que pela TV ou pela internet. Assim, há que se preocupar com os sintomas desse gigantesco organismo social que começa a se dar conta de si, (...).

Usando uma linguagem simples, podemos afirmar com alto grau de certeza que nós, terráqueos, temos que nos dar conta de que temos apenas essa "bolinha azul" perdida no meio da imensidão do cosmo e mais nada. Se nós a destruirmos – é bom que se diga -, não haverá alternativa, será o nosso fim. É importantíssimo que percebamos isso a tempo. Essa nossa condição coletânea de cumplicidade e fragilidade. Termos a capacidade de compreender, receber, amparar e ajudar o outro fragilizado e em condição de risco e ameaça, simplesmente por humanidade, por ele ser um semelhante digno de respeito, apoio e proteção como nós. (...) o monumental desafio que se coloca diante de nós (humanidade) no momento é ter que ressignificar a nossa própria condição existencial humana, e, de acordo com isso, também ressignificar a nossa relação com o outro (ou outros), com o diferente, com o meio ambiente, incluindo necessariamente suas necessidades e anseios. (...)

Para encerrar essas reflexões, faremos nossas as palavras do ex-presidente do Uruguai José Mujica, (...). Em visita recente ao Brasil, e falando para um público de estudantes (...), afirmou in verbis: "Nada é mais bonito que a vida. Mas, na vida há que se defender a liberdade. É possível esparramar a vida pelo universo. A vida humana. Mas, para isso, é preciso que comecemos a pensar como espécie, não só como país. A generosidade é o melhor negócio para a humanidade. (…) Nunca haverá um mundo melhor se não lutarmos para melhorarmos a nós mesmos. Faça da sua vida a aventura de não apenas sonhar um mundo melhor, se não lutar por ele, gastar a vida lutando por ele". Ademais – e reforçando essa ideia de fraternidade global -, ousaríamos afirmar que, enquanto um de nós humanos estiver em situação de risco, perigo, ameaça, violência, miséria, escravidão, desnutrição, indignidade e desabrigo, todos nós (humanidade) também estaremos presos e ancorados nessa energia horrenda e mutilante, pois, mesmo que ignoremos, somos todos irmãos, vivemos num mesmo planeta, temos as mesmas necessidades, e gozamos das mesmas condições de sensibilidade e fragilidade. Por isso a fraternidade é – segundo o nosso entendimento – a única qualidade capaz de lidar com tamanhas atrocidades e desumanidades. O mundo definitivamente não precisa de mais armas, guerras, conflitos, massacres, pilhagens, refugiados, explorações, desumanidades e barbáries. É chegado o momento de tomarmos consciência de nossa cumplicidade compartida com respeito ao planeta e à própria civilização humana, tomando consciência de vez que estamos juntos e irreversivelmente conectados numa única e mesma realidade.

*Alexandre Quaresma é escritor ensaísta, pesquisador de tecnologias e consequências socioambientais, com especial interesse na crítica da tecnologia.

**J. Bamberg é sertanejo, professor, pesquisador, artista e humanista, conselheiro e presidente da instituição ICCD/I. KAAPIKONGO – do Brasil de Dentro.

Fonte: http://sociologia.uol.com.br/barbarie-e-terror-ou-a-conta-chegou/ 30.12.2016. Acesso em: 23 de mar 2017.

Para os autores, o momento histórico atual (caracterizado pela barbárie e terror) tem relação com o passado histórico e com o chamado avanço civilizatório porque é: 
A
O reflexo dos processos de colonização e do contexto perverso do mercado capitalista, ao lado da globalização sectarista, portanto, agora chegou a hora de cobrar "a conta". 
B
A resposta das nações colonizadas como a América Latina, a África, O Oriente Médio, que estão em momento de vingança aos grandes impérios, uma vez que no passado foram oprimidas. 
C
O resultado das amarguras do passado, e, agora, as nações oprimidas pretendem cobrar "a conta" do Velho Mundo, por meio da violência. 
D
O momento propício ao terror, barbárie e genocídio porque as pessoas estão endurecidas para a humanidade e a fraternidade.