Questão
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ
2011
Fase Única
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Discursiva
TEXTO 1 

A solução 

Chamava-se Almira e engordara demais. Alice era a sua maior amiga. Pelo menos era o que dizia a todos com aflição, querendo compensar com a própria veemência a falta de amizade que a outra 
lhe dedicava. 

Alice era pensativa e sorria sem ouvi-la, continuando a bater à máquina. 

À medida que a amizade de Alice não existia, a amizade de Almira mais crescia. Alice era de rosto oval e aveludado. O nariz de Almira brilhava sempre. Havia no rosto de Almira uma avidez que nunca lhe ocorrera disfarçar: a mesma que tinha por comida, seu contato mais direto com o mundo. 

Porque Alice tolerava Almira, ninguém entendia. Ambas eram datilógrafas e colegas, o que não explicava. Ambas lanchavam juntas, o que não explicava. Saíam do escritório à mesma hora e esperavam condução na mesma fila. Almira sempre pajeando Alice. Esta, distante e sonhadora, deixando-se adorar. Alice era pequena e delicada. Almira tinha o rosto muito largo, amarelado e brilhante: com ela o batom não durava nos lábios, ela era das que comem o batom sem querer. 

– Gostei tanto do programa da Rádio Ministério da Educação, dizia Almira procurando de algum modo agradar. Mas Alice recebia tudo como se lhe fosse devido, inclusive a ópera do Ministério da 
Educação. 

Só a natureza de Almira era delicada. Com todo aquele corpanzil, podia perder uma noite de sono por ter dito uma palavra menos bem dita. E um pedaço de chocolate podia de repente ficar-lhe amargo na boca ao pensamento de que fora injusta. O que nunca lhe faltava era chocolate na bolsa, e sustos pelo que pudesse ter feito. Não por bondade. Eram talvez nervos frouxos num corpo frouxo. 

Na manhã do dia em que aconteceu, Almira saiu para o trabalho correndo, ainda mastigando um pedaço de pão. Quando chegou ao escritório, olhou para a mesa de Alice e não a viu. Uma hora 
depois esta aparecia de olhos vermelhos. Não quis explicar nem respondeu às perguntas nervosas de Almira. Almira quase chorava sobre a máquina. 
Afinal, na hora do almoço, implorou a Alice que aceitasse almoçarem juntas, ela pagaria. 

Foi exatamente durante o almoço que se deu o fato. 

Almira continuava a querer saber por que Alice viera atrasada e de olhos vermelhos. Abatida, Alice mal respondia. Almira comia com avidez e insistia com os olhos cheios de lágrimas. 

– Sua gorda! disse Alice de repente, branca de raiva. Você não pode me deixar em paz?! 

Almira engasgou-se com a comida, quis falar, começou a gaguejar. Dos lábios macios de Alice haviam saído palavras que não conseguiam descer com a comida pela garganta de Almira G. de Almeida. 

– Você é uma chata e uma intrometida, rebentou de novo Alice. Quer saber o que houve, não é? Pois vou lhe contar, sua chata: é que Zequinha foi embora para Porto Alegre e não vai mais voltar! 
Agora está contente, sua gorda? 

Na verdade Almira parecia ter engordado mais nos últimos momentos, e com comida ainda parada na boca. 

Foi então que Almira começou a despertar. E, como se fosse uma magra, pegou o garfo e enfiou-o no pescoço de Alice. O restaurante, ao que se disse no jornal, levantou-se como uma só pessoa. 
Mas a gorda, mesmo depois de feito o gesto, continuou sentada olhando para o chão, sem ao menos olhar o sangue da outra. 

Alice foi ao Pronto-Socorro, de onde saiu com curativos e os olhos ainda arregalados de espanto. Almira foi presa em flagrante. 

Algumas pessoas observadoras disseram que naquela amizade bem que havia dente-de-coelho. Outras, amigas da família, contaram que a avó de Almira, dona Altamiranda, fora mulher muito esquisita. 
Ninguém se lembrou de que os elefantes, de acordo com os estudiosos do assunto, são criaturas extremamente sensíveis, mesmo nas grossas patas. 

Na prisão, Almira comportou-se com docilidade e alegria, talvez melancólica, mas alegria mesmo. Fazia graças para as companheiras. Finalmente tinha companheiras. Ficou encarregada da roupa 
suja, e dava-se muito bem com as guardiães, que vez por outra lhe arranjavam uma barra de chocolate. Exatamente como para um elefante no circo. 

LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964, pp.80-82. 

TEXTO 2 

Entre os amigos, unidos por esse nobre sentimento (de amizade), os serviços e favores, elementos essenciais às outras amizades, não entram em linha de conta e isso porque as vontades intimamente fundidas são uma só vontade. Assim como a afeição que tenho por mim não se amplia com um serviço que preste a mim mesmo (embora os estóicos afirmem o contrário); assim como não sou grato a mim mesmo do serviço prestado a mim mesmo, assim também a união de tais amigos atinge tal perfeição que os leva a perder a ideia de se deverem alguma coisa, e odiar e rechaçar todas essas 
palavras que tendem a estabelecer uma divisão ou diferença, como o favor, obrigação, reconhecimento, pedido, agradecimento e outras. Efetivamente, em tudo lhes sendo comum, vontade, pensamento, maneira de ver, bens, mulheres, filhos, honra e até a vida, e em procurando ser apenas uma alma em dois corpos, na expressão muito certa de Aristóteles, nada se podem pedir ou dar. 

[...] 

Se nessa amizade a que me refiro, um pudesse dar alguma coisa ao outro, o benfeitor é que seria o favorecido. Colocando ambos acima de tudo a felicidade de obsequiar o outro, quem dá a seu amigo a oportunidade de fazê-lo é quem se mostra mais generoso, pois lhe outorga a satisfação de realizar o que mais lhe apraz. 

(MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 99)

A utilização de imagens grotescas e violentas acentua a tragicidade da história. Justifique com suas próprias palavras o seu uso e comente a possível relação entre o título “A solução” e a ironia empregada pelo narrador.