Questão
Universidade Estadual do Ceará - UECE
2024
2ª Fase
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TEXTO 1

Cartas para minha avó

01    Querida vó Antônia,

02    Minhas lembranças de você têm gosto de manga
03    verde e doce de abóbora. Têm cheiro de feijão e
04    jantar às seis da tarde. Você me adoçava a boca e
05    benzia a alma. “É cobreiro, tem que benzer.” Ou:
06    “Essa menina está aguada, dê o que ela quer
07    comer”. Eu amava passar minhas férias na sua casa,
08    sentir o amor em sua melhor forma.
09            Guardo na memória os mimos, as broncas
10    na minha mãe quando ela brigava comigo, o cheiro
11    do Yamasterol no cabelo. As mesadas que me dava
12    escondido, os passeios com o tio Edson. Como
13    meus pais não tinham carro, uma das minhas
14    maiores alegrias era saber que o tio Edson estava
15    indo a Santos me buscar para passar férias com
16    você em Piracicaba. Lá em casa, só quem passava
17    de ano direto tinha esse benefício. Muitas vezes fui
18    sozinha, sem Denis, Helder e Dara — o que eu
19    adorava, confesso, pois sem meus irmãos por perto
20    teria você só pra mim. Quando Dara ia, a gente não
21    somente disputava sua atenção, mas também
22    disputava para ver quem atenderia aquele telefone
23    bonito que você tinha. A vencedora sempre
24    acabava caçoando da perdedora.
25            Como morava em apartamento, eu
26    adorava brincar pela sua casa, vó, correr pelo
27    quintal, subir nas árvores, fugir dos meus primos
28    que colocavam cigarras no bolso para meter medo
29    em mim. “Parem de assustar sua prima”, você
30    dizia. Eu admirava sua coragem em acender uma
31    tocha de fogos para queimar a casa que os
32    marimbondos insistiam em construir na entrada da
33    sua casa no bairro São Dimas. “Quando algum te
34    picar, quero ver você sentir pena”, dizia quando eu
35    lamentava a morte dos bichos. Aliás, foi numa
36    dessas férias com você que eu fui picada pela
37    primeira vez por uma abelha. Voltei chorando para
38    casa, aos berros, e você gritando “O que foi,
39    menina?”. Foi toda uma operação de guerra para
40    conseguir tirar o ferrão. Depois, você passou uma
41    mistura de ervas que fez meu braço desinchar
42    rápido, e logo eu estava na rua de novo.
43           Lembro também, vó, de seu colo quente e
44    amoroso, das suas mãos rápidas que benziam meu
45    corpo enquanto sussurrava rezas quase
46    incompreensíveis. As mesmas mãos que benziam
47    eram as que preparavam comidas fartas e
48    apetitosas no domingo. Que saudade de suas mãos
49    lindas, mãos com história, com calos, mas macias
50    ao acarinhar e trançar meus cabelos. Hoje tento
51    entender o significado de certo mistério que te
52    envolvia.
53           Quando você ia a Santos nos visitar, eu
54    mal dormia na véspera, de tanta ansiedade. Como
55    era gostoso tê-la em casa nos mimando. Sempre
56    trazia na mala presentes para os netos, fazia doces
57    deliciosos para todos, cuidava para que ninguém
58    brigasse. O que eu mais gostava era ter você
59    comigo, trançando meus cabelos. Todas as vezes
60    que você ia embora, eu chorava. Até hoje
61    despedidas são difíceis pra mim.
62          Nunca consegui perguntar a você como foi
63    criar sete filhos com meu avô. Como foi ser a mãe
64    da Edna, do João, do José Roberto, da Erani
65    Benedita, do Avelino, do Edson e do Edmilson.
66    Como foi ser a esposa de José dos Santos. Como
67    você se sentiu ao construir uma boa casa depois de
68    uma vida inteira trabalhando fora, em casa de
69    família. Como foi ser a matriarca de uma das
70    poucas famílias negras de São Dimas, bairro que
71    depois se tornaria de classe média. Como você
72    lidava com o racismo. Será que pensava sobre isso
73    ou foi forçada a naturalizá-lo? Eu não tive tempo
74    de lhe perguntar nada disso. Quais eram os seus
75    sonhos, seus medos.
76           Um bicho-barbeiro te picou, e você
77    precisou colocar um marca-passo. Com a saúde
78    muito fragilizada, aos 68 anos você nos deixou,
79    com muito ainda para viver. [...]

(RIBEIRO, Djamila. Cartas para minha avó. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p.9-11. Trecho. Texto adaptado.)

O texto 1 é autobiográfico porque
A
emprega verbos predominantemente no presente do indicativo.
B
apresenta os fatos mais marcantes e interessantes da vida de uma pessoa.
C
traz em sua estrutura uma profusão de advérbios de modo e de lugar.
D
menciona pessoas famosas que fizeram parte da vida da pessoa biografada.