TEXTO 1
Cartas para minha avó
01 Querida vó Antônia,
02 Minhas lembranças de você têm gosto de manga
03 verde e doce de abóbora. Têm cheiro de feijão e
04 jantar às seis da tarde. Você me adoçava a boca e
05 benzia a alma. “É cobreiro, tem que benzer.” Ou:
06 “Essa menina está aguada, dê o que ela quer
07 comer”. Eu amava passar minhas férias na sua casa,
08 sentir o amor em sua melhor forma.
09 Guardo na memória os mimos, as broncas
10 na minha mãe quando ela brigava comigo, o cheiro
11 do Yamasterol no cabelo. As mesadas que me dava
12 escondido, os passeios com o tio Edson. Como
13 meus pais não tinham carro, uma das minhas
14 maiores alegrias era saber que o tio Edson estava
15 indo a Santos me buscar para passar férias com
16 você em Piracicaba. Lá em casa, só quem passava
17 de ano direto tinha esse benefício. Muitas vezes fui
18 sozinha, sem Denis, Helder e Dara — o que eu
19 adorava, confesso, pois sem meus irmãos por perto
20 teria você só pra mim. Quando Dara ia, a gente não
21 somente disputava sua atenção, mas também
22 disputava para ver quem atenderia aquele telefone
23 bonito que você tinha. A vencedora sempre
24 acabava caçoando da perdedora.
25 Como morava em apartamento, eu
26 adorava brincar pela sua casa, vó, correr pelo
27 quintal, subir nas árvores, fugir dos meus primos
28 que colocavam cigarras no bolso para meter medo
29 em mim. “Parem de assustar sua prima”, você
30 dizia. Eu admirava sua coragem em acender uma
31 tocha de fogos para queimar a casa que os
32 marimbondos insistiam em construir na entrada da
33 sua casa no bairro São Dimas. “Quando algum te
34 picar, quero ver você sentir pena”, dizia quando eu
35 lamentava a morte dos bichos. Aliás, foi numa
36 dessas férias com você que eu fui picada pela
37 primeira vez por uma abelha. Voltei chorando para
38 casa, aos berros, e você gritando “O que foi,
39 menina?”. Foi toda uma operação de guerra para
40 conseguir tirar o ferrão. Depois, você passou uma
41 mistura de ervas que fez meu braço desinchar
42 rápido, e logo eu estava na rua de novo.
43 Lembro também, vó, de seu colo quente e
44 amoroso, das suas mãos rápidas que benziam meu
45 corpo enquanto sussurrava rezas quase
46 incompreensíveis. As mesmas mãos que benziam
47 eram as que preparavam comidas fartas e
48 apetitosas no domingo. Que saudade de suas mãos
49 lindas, mãos com história, com calos, mas macias
50 ao acarinhar e trançar meus cabelos. Hoje tento
51 entender o significado de certo mistério que te
52 envolvia.
53 Quando você ia a Santos nos visitar, eu
54 mal dormia na véspera, de tanta ansiedade. Como
55 era gostoso tê-la em casa nos mimando. Sempre
56 trazia na mala presentes para os netos, fazia doces
57 deliciosos para todos, cuidava para que ninguém
58 brigasse. O que eu mais gostava era ter você
59 comigo, trançando meus cabelos. Todas as vezes
60 que você ia embora, eu chorava. Até hoje
61 despedidas são difíceis pra mim.
62 Nunca consegui perguntar a você como foi
63 criar sete filhos com meu avô. Como foi ser a mãe
64 da Edna, do João, do José Roberto, da Erani
65 Benedita, do Avelino, do Edson e do Edmilson.
66 Como foi ser a esposa de José dos Santos. Como
67 você se sentiu ao construir uma boa casa depois de
68 uma vida inteira trabalhando fora, em casa de
69 família. Como foi ser a matriarca de uma das
70 poucas famílias negras de São Dimas, bairro que
71 depois se tornaria de classe média. Como você
72 lidava com o racismo. Será que pensava sobre isso
73 ou foi forçada a naturalizá-lo? Eu não tive tempo
74 de lhe perguntar nada disso. Quais eram os seus
75 sonhos, seus medos.
76 Um bicho-barbeiro te picou, e você
77 precisou colocar um marca-passo. Com a saúde
78 muito fragilizada, aos 68 anos você nos deixou,
79 com muito ainda para viver. [...]
(RIBEIRO, Djamila. Cartas para minha avó. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p.9-11. Trecho. Texto adaptado.)
O texto 1 é autobiográfico porque