TEXTO 2
Lavínia
Entrou no quarto e fechou silenciosamente a porta. Não acendeu a luz, preferindo ligar um pequeno abajur que iluminou debilmente o aposento. Deu alguns passos em direção à cama e sentou-se numa banqueta.
— Lavínia — murmurou — Já estou aqui. Suspirou.
— Demorei um pouco, porque a governanta não queria me largar. Maldita! Tive que mentir que ia ao banheiro. Não foi boa essa, Lavínia? No banheiro. Soltou uma risadinha; um cão latiu ao longe como se estivesse respondendo. Ela olhou com ansiedade pela
janela. Nada viu. O gramado bem tratado brilhava à luz da lua. Folhas de plátano boiavam na piscina. — Agora está tudo bem. Vou cuidar de ti como só eu sei fazer. Antes de mais nada, um banho; um bom banho quente, de imersão. Vou prepará-lo agora mesmo. A governanta não quer que eu me aproxime da banheira. Diz que é perigoso, para uma menina de dez anos. Ou viste esta, Lavínia? Perigoso para mim! Naturalmente, ouço e calo. Posso responder àquela ignorante? Nem sequer falamos a mesma linguagem: o meu vocabulário é maior, mais rico, mais expressivo. Leio numa semana mais livros do que ela em toda sua vida.
Abaixou-se, tirou os sapatos.
— Não devemos fazer ruído.
Do bolso do casaco extraiu um pacote.
— Adivinha o que tenho aqui, Lavínia. Não adivinhas? Pois, exatamente: marrom-glacês. Mar rom-glacês! Não é ótimo? E olha que me deu trabalho surrupiá-los. Mas eu o fiz: nas ventas da governanta. Vou colocá-los aqui, na mesinha de cabeceira. Serão saboreados depois do banho, não antes: banho com o estômago cheio é perigoso, dizia papai. Calou- -se bruscamente e ficou a olhar pela janela. Depois disse, sem se voltar:
— Vais vestir o teu pijama de flanela azul, dei tar na cama, acender a lâmpada de cabeceira e ler o teu livro predileto, saboreando os doces. Não é uma boa ideia, Lavínia? Me diz: alguém cuida tão bem de ti como eu? Mas assim deve ser, pois todos os outros são inimigos. Mamãe, aquele homem que vem aqui e a governanta.
Inclinou-se para a cama:
— E agora vem o melhor. Sabes o que vou fazer, antes de dormires? Vou te acariciar: passarei minha mão bem de leve em teu rosto suave, em teus cabelos de ouro, em tuas pálpebras macias. E, Lavínia — bem, isto não posso prometer, mas farei todo o possível — cantarei para ti. Cantarei baixinho aquela música que papai ensinou antes de morrer, aquela em francês, te lembras? Sobre as meninas solitárias. Estarás bem enroladinha no cobertor; como uma larva no casulo. E eu te darei boa-noite...
A porta se abriu. Era a governanta, iluminada pela luz forte do corredor.
— Lavínia — disse ela, em voz baixa. — Não há ninguém aqui além de ti, vês? Estás falando sozinha — de novo. Agora, põe teus sapatos e desce; tua mãe e aquele senhor querem te dar boa-noite. Vão sair.
Arrumou-se vagarosamente. A governanta esperava, sorrindo sempre. Antes de sair, Lavínia voltou-se para cama e piscou um olho.
— Volto já — murmurou.
(SCLIAR, Moacyr. Melhores contos. 6. ed. SãoPaulo: Global, 2003. p. 83-84.)
A narrativa do Texto 2 nos fala, de modo indireto, do desejo de liberdade individual de Lavínia, de se cuidar e autoconstituir-se como sujeito, o que nos possibilita pensar nos ideais e nas práticas da vida privada da sociedade burguesa europeia do século XIX. Analise as proposições apresentadas a seguir referentes a esse período:
I - Os liberais franceses defendiam a garantia dos direitos privados como uma forma de compor a força de uma nação, ou seja, formar cidadãos para o exercício da política.
II - Os tradicionalistas do período tinham grande preocupação com a família, criticavam o afrouxamento dos costumes, a distorção dos papéis sexuais, as famílias desfeitas e o divórcio.
III - Os socialistas criticavam a emancipação das mulheres e a ampliação de seus direitos, defendiam o casamento nuclear, condenavam o aborto e o divórcio.
IV - A mulher teve participação dominante na política do século XIX na Europa. Sua presença nos salões era constante e determinante para a tomada de decisões políticas.
Em relação às proposições analisadas, assinale a única alternativa cujos itens estão todos corretos: