Questão
Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC - GO
2018
Fase Única
VER HISTÓRICO DE RESPOSTAS
TEXTO-3O-poente72797755e2b
TEXTO 3

O poente da bandeira 

Aurorava. O sol dava as cinco. As sombras, neblinubladas, iam espertando na ensonação geral. No topo das árvores, frutificavam os pássaros. Toda madrugada confirma: nada, neste mundo, acontece num súbito. A claridade já muito espontava, como lagarta luzinhenta roendo o miolo da escuridão. As criaturas se vão recortando sob o fundo da inexistência. Neste tempo uterino o mundo é interino. O céu se vai azulando, permeolhável. Abril: sim, deve ser demasiado abril. Agora, que a aurora já entrou neste escrito, entremos nós no assunto.

Nesta manhã tão recente, uma criança vem caminhando. Quem é este menino que faz do mundo outro menino? Deixemos seu nome, esqueçamos seu lugar. Dele se engrandece apenas a avó: que o miúdo tem intimidades com o mundo de lá. De quando em quando, a criança lhe estende a faca e pede: 

— Me corte, avó! 

Para sonhar o menino tinha que sangrar. A avó lhe cedia o jeito, habituada à lâmina como outras mães se acostumam ao pente. O sangue espontava e o mundo presenciava o futuro, tivesse a barriga prenhe do tempo encostada em seu ouvido. Ditos da velha, quem se fia? 

Confirmado é que o menino segue por aquela manhã. Seus pés escolhem as pedras, nem precisam dos olhos para se guiarem. O miúdo passa no municipal edifício, o único da vila. Seu rosto se ergue para olhar a bandeira. O pano dança dentro do céu, como luz que se enruga. Um velho coqueiro sem copa serve de mastro. As cores do pano estão tão rasgadas que nada nele arco-irisca. Os olhos do miúdo pirilampejam de encontro à luz: é quando o golpe lhe tombou. Deflagra-se-lhe a cabeça, extracraniana. A voz autoritarista do soldado lhe desce: 

— Você não viu a bandeira?

Tombado no carreiro, sobre as pedras que an-tes evitava, o menino olha as cimeiras paragens. Um coqueiro lhe traz lembranças litorais. Onde há uma palmeira sempre deve ser inventado um mar, eternas ondas morrendo. Agora, rebatido no repentino solo, o menino estranha ver tanto céu. A pergunta lhe vem pastosa: porquê o chão, tão debaixo dele? Outro gol-pe, a bota espessa lhe levando o rosto ao encosto da terra. Fica assim, pisado, sem outra visão que a da areia vermelha. Seu pensamento se desarruma. Palmeira, palma do mar, onde o azul espeta suas raízes. Pergunta-se, com as devidas vénias: e se içassem não a bandeira mas a terra? 

Ceda-se o turno ao mundo. A voz lhe chega, baixada como um chicote: 

— Você, miúdo, não aprendeu respeitos com a bandeira?

 Sente o sangue escorrendo, a bota do solda-do ainda lhe dói uma última vez. Como pode saber ele os procedimentos exigidos pelo vigilante? Mas o soldado é totalmente militar: está só cumprindo ignorâncias, jurista de chumbo incapaz de distinguir um fora-da-lei de um da lei-de-fora. E o menino vai vislumbrando um outro caminho, tão sem pedrinhas que os pés nem tinham que escolher. Um caminho que dispensava toda bandeira. À medida que o soldado desfere mais violência, a bandeira parece perder as cores, a paisagem em redor esfria e a luz tomba de joelhos. É, então. 

Sucede coisa que nem nunca nem jamais: a bandeira, em inesperado impulso, se ergue em ave, nuamente atravessando nuvens. Fluvial, o pano migra para outros céus. No momento, se vê o quanto as bandeiras roubam aos azuis celestiais. 

Mas o espanto apenas se estreou, aquilo era apenas o presságio. Porque, no sequente instante, a palmeira se despenha das suas alturas fulminando o soldado, em clarão de rasgar o mundo em dois. Sobem confusas poeiras, mas depois a palmeira se es-clarece, tombada em assombro, junto aos corpos. 

A árvore estava já morta, ainda houve o dito. Poucos criam. A crença estava com a avó, sua outra versão: o tronco se desmanchara, líquido, devido à morte daquela criança. Vingança contra as injustiças praticadas contra a vida. De se acreditar estavam apenas aquelas duas mortes, uma contra a outra. A palmeira sumiu mas para sempre ficara a sua ausência. Quem passe por aquele lugar escuta ainda o murmúrio das suas folhagens. A palmeira que não está conforta a sombra de um menino, sombra que persiste no sol de qualquer hora.

(COUTO, Mia. O poente da bandeira. In: ______. Estórias abensonhadas. 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 53-56.)

Assinale a alternativa que, no conto “O poente da bandeira”, de Mia Couto (Texto 3), sintetiza o autoritarismo relacionado à tradição do respeito à bandeira: 
A
O rosto do menino se ergue para olhar a bandeira. 
B
O menino não segue os procedimentos do vigilante.
C
O soldado mata o menino com truculência. 
D
O soldado morre em defesa da bandeira.