TEXTO 4
Morte do leiteiro
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim. (...)
Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.
Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente. (...)
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade. (...)
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. In. Nova reunião: 23 livros de poesia. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 151-153. Excerto.
A produção de Carlos Drummond de Andrade faz parte do Segundo Momento Modernista. A Europa vive o avanço do nazifascismo e a II Guerra Mundial; e o Brasil vive o Estado Novo de Getúlio Vargas. É nesse período conturbado que Drummond passa a questionar o “estar-no-mundo” com uma poesia pungente e também politizada. Assinale o trecho poético que representa bem essa fase da produção de Drummond.