TEXTO
Vai-se Pero Marques e diz Inês Pereira:
INÊS PEREIRA Pessoa conheço eu
que levara outro caminho...
Casai lá com um vilãozinho
mais covarde que um judeu!
Se fora outro homem agora
e me topara a tal hora,
estando assi às escuras,
falara-me mil doçuras,
ainda que mais não fora...
Vem a Mãe e diz:
MÃE Pero Marques foi-se já?
INÊS PEREIRA Para que ele aqui?
MÃE Não te agrada ele a ti?
INÊS PEREIRA Vá-se muitieramá!¹
Que sempre disse e direi:
Mãe, eu me não casarei
Senão com homem discreto,²
E assi vo-lo prometo;
ou antes o leixarei.
Que seja homem malfeito,
feio, pobre, sem feição;
como tiver discrição
não lhe quero mais proveito.
E saiba tanger viola,
E como eu pão e cebola,
Sequer uma cantiguinha!
Discreto feito em farinha,
Porque isto me degola.³
MÃE Sempre tu hás-de bailar,
e sempre ele há-de tanger?
Se não tiveres que comer,
O tanger te há-de fartar?
INÊS PEREIRA “Cada louco com sua teima.”
Com uma borda de boleima⁴
e uma vez de água fria,
não quero mais cada dia.
MÃE Como às vezes isso queima!
E que é desses escudeiros?
INÊS PEREIRA Eu falei ontem ali
que passaram por aqui
os judeus casamenteiros,
e hão de vir logo aqui.
¹- Mandar alguém para o inferno.
²- Pessoa com aparência educada.
³ - Aquilo que apraz, satisfaz.
⁴ - Fatia de pão.
VICENTE, GIL. Farsa de Inês Pereira. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006.p.68-70.
Segundo os estudiosos de Gil Vicente, a Farsa de Inês Pereira foi escrita a partir do mote “Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube”, dado ao autor como desafio à dúvida de certos homens sobre as suas produções literárias.
Assim o mote se configura, dentro da peça, na personagem