Questão
Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF
2018
Fase Única
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Texto 1

Drauzio Varella: “O único lugar em que a mulher tem liberdade sexual é na cadeia”

Em novo livro sobre uma penitenciária feminina, oncologista discute as marcas do machismo na trajetória das presas.

Gil Alessi / Marina Rossi
São Paulo - 9 JUL 2017

"A prisão é um experimento sádico da nossa sociedade”, afirma o oncologista e escritor Drauzio Varella. Mas sem ignorar a dor provocada pelo confinamento, abandono e distanciamento dos filhos e familiares, o médico vislumbra no cárcere um espaço onde mulheres conseguem se livrar, ao menos temporariamente, da repressão machista que impera do outro lado do muro. “As mulheres são reprimidas desde que nascem, não existe nenhum outro local na sociedade onde ela é livre assim como na cadeia”, afirma Varella em entrevista ao EL PAÍS. Atrás das grades da Penitenciária Feminina da Capital, no Carandiru, convivem em harmonia diversos tipos de sapatões (homossexuais que assumem aparência masculina), entendidas (homossexuais que mantêm aparência feminina) e mulheríssimas (heterossexuais que ocasionalmente têm relações com mulheres) – os termos foram criados pelas próprias presas. O escritor relata suas experiências tratando de detentas no livro Prisioneiras (Companhia das Letras). A obra fecha uma trilogia – os outros são Carandiru e Carcereiros, ambos publicados pela mesma editora – sobre sua vivência de décadas atendendo de forma voluntária presos e presas paulistas. "Cadeia é um lugar muito sensível de uma sociedade. Se você visitar uma cadeia, um pronto socorro e um estádio de futebol lotado, você consegue fazer uma ideia de como é uma sociedade", afirma.

Pergunta 1. Existe comportamento homossexual nos presídios femininos?

Resposta. O comportamento homossexual entre as presas é muito mais abrangente do que aparenta no início. Isso leva tempo para perceber. Porque essas relações femininas são mais sutis. Na cadeia de homens você percebe que alguns presos são notadamente homossexuais. Mesmo que não sejam travestis, são homossexuais, andam com outro homem que você sabe que é o marido dele. Na cadeia feminina não. Entre elas as relações adquirem uma outra dinâmica. Um número muito grande de presas tem comportamento homossexual, é a maioria esmagadora! Gira em torno de 80%, talvez até mais.

Pergunta 2. No livro você fala sobre os diferentes perfis de homossexualidade no presídio feminino. O que lhe chamou a atenção?

Resposta. O contato com essas diferenças de sexualidade é imediato. Quando você entra numa cadeia feminina tem uns 15% de mulheres que você olha e são homens. Estas mulheres usam o cabelo bem curto, com aquelas riscas que jogador de futebol faz, elas têm trejeitos de homem. Se você faz uma observação mais cuidadosa percebe que elas não se depilam. Quando eu fui examiná-las, percebi que elas não usam calcinha, usam cueca, e tops bem apertados para esconder o seio.

Essas mulheres que têm aparência masculina são sapatões. Na rua é uma palavra pejorativa. Na cadeia não. Elas falam assim: “Sou casada com um sapatão”, com o maior respeito. As que têm o estereótipo feminino não são sapatões, já entram na categoria das entendidas. E com o tempo percebi que não se pode dividir em duas categorias, porque existem vários subtipos: o sapatão original, que já era lésbica do lado de fora, sapatão sacola, que é hetero nas ruas, mas na cadeia assume outra identidade de gênero, sapatão badarosca, sustentada pela parceira, e a chinelinho, que elas dizem que sai da cadeia e abandona o homossexualismo, calça o chinelinho de cristal e vai atrás do príncipe encantado.

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Pergunta 3. A sexualidade então é muito diferente de um presídio masculino...

Resposta. O homossexual ou a travesti no presídio masculino não pode nada. Não pode distribuir comida, não pode brigar com outro, não pode gritar com malandro... Não pode enfrentar jamais. Na detenção morria gente quando acontecia isso. Já no feminino tudo é visto com naturalidade. “Minha mulher”, elas falam. “Sou casada com fulana”, “meu amor foi para o regime semiaberto, estou sozinha, estou triste”. E as guardas, a diretoria, todo mundo respeita, ninguém cria caso.

Pergunta 4. Que outras diferenças você observa entre um presídio masculino e um feminino?

Resposta. A diferença fundamental é que essas mulheres todas têm filhos. É muito raro encontrar alguma sem filhos. O homem quando está preso pode até estar preocupado com os filhos dele – alguns nem aí, né? Mas ele sabe que tem uma mulher cuidando das crianças: uma irmã, uma tia, a mãe... Mas gravidez indesejada é problema para a mulher, não para os homens, porque eles simplesmente abandonam. A mulher vai pra cadeia e perde o controle da família. Ela sabe que as crianças vão ficar desprotegidas: as pessoas abusam de criança com a mãe presa. E os filhos muitas vezes são espalhados. Imagina três irmãos, acostumados a ficarem juntos, e quando a mãe é presa vai cada um para um lado. Imagina a dor dessas crianças. E a mulher sabe disso, sabe que quem está causando isso é ela, ela foi a responsável pela separação. Ainda que de forma involuntária, foi algo provocado pelo crime que ela cometeu. Quer machismo mais evidente do que um cara ser preso e condenado a mais de 25 anos de cadeia, e a mulher não pode abandonar ele, ter que fazer visita íntima todo final de semana? E quando a mulher vai presa o cara simplesmente desaparece.

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Pergunta 5. A situação dos presídios de São Paulo é péssima. Por que não temos mais rebeliões?

Resposta. Existem dois lados desta questão. São Paulo desenvolveu um sistema de administração penitenciária muito competente, que envolve os funcionários, carcereiros e a administração. Existe um setor de inteligência que fica interceptando chamadas telefônicas, juntando pedaços de um quebra cabeça. E tentam se antecipar: “esse cara está levando informação pra lá, vamos transferir”. É um jogo de gato e rato.

Por outro lado, rebelião atrapalha muito os negócios do crime. Existe um interesse do PCC. Já ouviu falar de fuga em São Paulo? Há muito tempo não se fala de fuga. Em nenhuma cadeia do mundo você tem isso. O próprio PCC sabe que não pode bater de frente, já fizeram isso no passado. Mas ir para o enfrentamento causa problemas que repercutem aqui fora. O PCC amadureceu muito com os anos, surgiu com uma violência absurda, mas foi se moderando.

[...]

Pergunta 6. Como retratar as presas de forma a não vitimizá-las nem retratá-las como monstros?

Resposta. É uma coisa meio natural, que eu faço desde o Carandiru. Pensei muito nisso ao escrever o Carandiru. Não gosto de ler livros quando percebo uma intenção oculta do autor. É lógico que toda história passa pelo filtro de quem escreve, mas não posso tomar partido enquanto estou escrevendo. Eu tento contar a história como um narrador que está vendo de fora. Ninguém é vítima. Elas entraram por esse caminho do crime por alguma lógica delas. E independentemente do que fizeram, elas não perdem sua condição humana.

Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/05/politica/1499276543_932033.html. Com adaptações. Acesso em 23 de agosto de 2017.

Em novo livro sobre uma penitenciária feminina, oncologista discute as marcas do machismo na trajetória das presas.

A vírgula, no trecho acima, foi usada com a intenção de
A
separar um adjunto adnominal.
B
separar um adjunto adverbial de lugar.
C
separar um adjunto adverbial de modo.
D
modificar o sentido atribuído à penitenciária descrita no livro.
E
modificar o sentido atribuído ao machismo na trajetória das presas.