Texto 1
Lembrança de Morrer
No more! o never more!
Shelley
Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento;
Não quero que numa nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto o poento caminheiro
- Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfez ao dobre de um sineiro;
Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade – é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade – é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe! pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!
De meu pai...de meus únicos amigos,
Poucos – bem poucos – e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoidecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.
Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei...que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
Beijarei a verdade santa e nua
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
- Foi poeta – sonhou – e amou na vida.-
Sombras do vale, noites da montanha,
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe o canto!
Mas quando preludia ave d’aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua prantear-me a lousa!
(AZEVEDO, Álvares de. Poesias Completas. São Paulo. Editora Saraiva. 1957. p. 146)
Texto 2
Quando eu morrer
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus amigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito é de Deus.
Adeus.
(ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. São Paulo.Círculo do Livro. s/d. p.353)
Considere as afirmações seguintes sobre os textos dados.
I - Mário de Andrade desenvolve seu poema expressando-se através de uma linguagem simples e prosaica, diferente daquela empregada por Álvares de Azevedo, a qual revela adjetivação abundante e maior variedade de recursos de estilo.
II. –Na décima estrofe do texto 1, tem-se a visão da poesia, do sonho e do amor como únicas realidades que se colocam acima do deserto e do vazio da existência humana, tema bastante caro ao Romantismo, especialmente à chamada “poesia mal do século” (ou “byroniana”).
III. –A sétima estrofe do texto 1 pode ser tomada como exemplo do amor platônico, ou seja, espiritualizado, que marcou a obra, e , segundo seus biógrafos, a vida de Álvares Azevedo.
IV. –Ao contrário do que ocorre no texto 1, no texto 2 não se observam índices biográficos do autor, que se limita a referências à cidade de São Paulo ou a certas localidades com ela historicamente identificadas.
V. – Nos versos “Quando em mim rebentar-se a fibra”, “E nem desfolhem na matéria impura”, “Se cale por meu triste pensamento” (texto 1), ocorrem expressões que podem ser entendidas como eufemísticas.