Questão
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ
2018
Fase Única
Texto-1O-que-pode11353be8cde1
Discursiva
Texto 1

O que pode a literatura?

Em sua Autobiografia, publicada logo após a sua morte, em 1873, John Stuart Mill narra a intensa depressão da qual foi vítima aos 20 anos. Ele se torna “insensível a toda alegria, assim como a toda sensação agradável, num desses mal-estares em que tudo o que em outras ocasiões proporciona prazer se torna insípido e indiferente”. Todos os remédios que experimenta se mostram ineficazes, e sua melancolia se instala de forma contínua. Ele continua a cumprir mecanicamente os gestos habituais, mas sem nada sentir. Esse estado doloroso se prolonga por dois anos. Depois, pouco a pouco, se dissipa. Um livro que Mill lê por acaso naquele momento tem papel particular em sua cura: trata-se de uma coletânea de poemas de Wordsworth. Mill encontra no livro a expressão de seus próprios sentimentos sublimados pela beleza dos versos. “Eles me pareceram ser a fonte na qual eu podia buscar a alegria interior, os prazeres da simpatia e da imaginação que todos os seres humanos podem compartilhar [...]. Eu precisava que me fizessem sentir que há a contemplação tranquila das belezas da natureza uma felicidade verdadeira e permanente. Wordsworth me ensinou tudo isso não somente sem me desviar da consideração dos sentimentos cotidianos e do destino comum da humanidade, mas também duplicando o interesse que eu trazia por eles.”

Aproximadamente 120 anos mais tarde, uma mulher ainda jovem se encontra numa prisão de Paris, presa por ter conspirado contra o invasor alemão. Charlotte Delbo está sozinha em sua cela; submetida ao regime de “Noites e nevoeiro”*, ela não tem acesso à leitura. Mas a detenta da cela de baixo pode retirar livros da biblioteca. Então, Delbo tece uma corda com fios retirados do seu cobertor e faz subir um livro pela janela. A partir desse momento, Fabrice del Dongo** passa a ser seu companheiro de cela. Apesar de não falar muito, ele permite que ela interrompa sua solidão. Alguns meses mais tarde, no vagão de animais que a conduz a Auschwitz, Dongo desaparece, mas Charlotte ouve uma outra voz, a do Alceste, o misantropo***, que lhe explica em que consiste o inferno para o qual ela se dirige e lhe mostra o exemplo da solidariedade. No campo, outros heróis sedentos do absoluto lhe fazem visita: Electra, Don Juan, Antígona. Uma eternidade mais tarde, de volta à França. Delbo sofre para voltar à vida: a luz cegante de Auschwitz varreu toda ilusão, proibiu toda imaginação, declarou falsos os rostos e os livros... até o dia em que Alceste retorna e a arrebata com a sua palavra. Em face do extremo, Charlotte Delbo descobre que as personagens dos livros podem se tornar companheiras confiáveis. “As criaturas do poeta”, ela escreve, “são mais verdadeiras que as criaturas de carne e osso, porque são inesgotáveis. É por essa razão que elas são minhas amigas, minhas companheiras, aquelas graças às quais estamos ligados a outros seres humanos, na cadeia dos seres e na cadeia da história.”

Não vivi nada tão dramático quanto Charlotte Delbo, tampouco conheci as agruras da depressão descritas por John Stuart Mill; no entanto, não posso dispensar as palavras dos poetas, as narrativas dos romancistas. Elas me permitem dar forma aos sentimentos que experimento, ordenar o fluxo de pequenos eventos que constituem minha vida. Elas me fazem sonhar, tremer de inquietude ou me desesperar. Quando estou mergulhado em desgosto, a única coisa que consigo ler é a prosa incandescente de Marina Tsvetaeva; todo o restante me parece insípido. Outro dia, descubro uma dimensão da vida somente pressentida antes e, porém, a reconheço imediatamente como verdadeira: vejo Nastassia Philipovna através dos olhos do príncipe Míchkin, “o idiota” de Dostoievski, ando com ele nas ruas desertas de São Petersburgo, impulsionado pela febre de um iminente ataque de epilepsia. E não posso me impedir de me perguntar: por que Míchkin, o melhor dos homens, aquele que ama 
aos outros mais do que a si mesmo, deve terminar sua existência reduzido à debilidade, enclausurado em um asilo psiquiátrico?

A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. A literatura tem um papel vital a cumprir; mas por isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é marginalizado, quando triunfa uma concepção absurdamente reduzida do literário. O leitor comum, que continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar sentido à sua vida, tem razão contra professores, críticos e escritores que lhe dizem que a literatura só fala de si mesma ou que apenas pode ensinar o desespero. Se esse leitor não tivesse razão, a leitura estaria condenada a desaparecer num curto prazo.

Como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo, nada é assim tão complexo), a experiência humana. Nesse sentido, pode-se dizer que Dante ou Cervantes nos ensinam tanto sobre a condição humana quanto os maiores sociólogos e psicólogos e que não há incompatibilidade entre o primeiro saber e o segundo.

*Referência ao documentário de Alain Resnais, Nuit et Brouillard (1955), primeiro a abordar e mostrar ao mundo os horrores dos campos de concentração nazistas. [...] A expressão “noite e nevoeiro” é retirada do decreto alemão Nacht und Nebel, que determinava o encarceramento em locais secretos de acusados de conspirar contra o regime nazista. (N.T.)

**Fabrice del Dongo é o herói do romance A Cartuxa de Parma (1839), de Stendhal. (N.T.)

***Alceste é personagem da peça O Misantropo (1666), de Molière. (N.T.)

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. 2ª ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. p.73-77.

a) Embora o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito do indicativo sejam os tempos verbais normalmente empregados para expressar ações passadas em relação ao momento da enunciação, há vezes em que são substituídos pelo presente do indicativo, como ocorre, por exemplo, no 2º parágrafo do Texto 1. Explique o efeito de sentido que a substituição provocou nesse parágrafo do Texto 1.

b) Com relação ao trecho abaixo, faça o que é solicitado a seguir:

“A literatura tem um papel vital a cumprir; mas por isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é marginalizado, quando triunfa uma concepção absurdamente reduzida do literário.” (penúltimo parágrafo do Texto 1)

i. Identifique o referente da palavra sublinhada.

ii. Transcreva o advérbio que traz uma avaliação do enunciador do texto.