Texto 3
Minha Vida e Meus Amores
Mon Dieu, fais que je puisse aimer!
S. Beuve.
Quando, no albor da vida, fascinado
Com tanta luz e brilho e pompa e galas,
Vi o mundo sorrir-me esperançoso:
— Meu Deus, disse entre mim, oh! Quanto é doce.
Quanto é bela esta vida assim vivida! –
Agora, logo, aqui, além, notando
Uma pedra, uma flor, uma lindeza,
Um seixo da corrente, uma conchinha
À beira-mar colhida!
Foi esta a infância minha; a juventude
Falou-me ao coração: - amemos, disse,
Porque amar é viver.
E esta era linda, como é linda a aurora
No fresco da manhã tingindo as nuvens
De rósea cor fagueira;
Aquela tinha um quê de anelos meigos
Artífice sublime;
Feiticeiro sorrir dos lábios dela
Prendeu-me o coração; - julguei-o ao menos.
(...)
Gonçalves Dias. In: Poesia e prosa Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. p.136
Um cinturão
Graciliano Ramos
Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo. A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal. (...)
Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que rogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo. (...)
Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta, eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me, num desespero.
O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.
Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. (...)
In: Fragmento de Infância. 32a ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 31/32
a) Indique, neste fragmento de Infância, expressões que evidenciam a alteração do olhar da criança sobre o mundo, comparado ao olhar lírico verificado no Texto 3, de Gonçalves Dias.
b) Comparando Infância, de Carlos Drummond de Andrade, e o fragmento de Infância, de Graciliano Ramos, é possível perceber marcas de linguagem comuns a que momento literário? Indique duas que lhe pareçam relevantes.