Texto I:

Não Existe Pecado ao Sul do Equador
Não existe pecado do lado de baixo do Equador
Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor
Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho
Um riacho de amor
Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo
Que eu sou professor
Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar
Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá
Vê se me usa, me abusa, lambuza
Que a tua cafuza
Não pode esperar
(...)
(Chico Buarque de Holanda e Rui Guerra, 1973)
Texto II :

Ultra aequinoxialem non peccari
A primeira vez que deparei com a máxima que encabeça este artigo foi ouvindo “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, de Chico Buarque e Rui Guerra. A canção, que fazia parte originalmente da peça “Calabar” (banida pela censura no início dos anos 70), ganhou vida própria na voz insinuante e melindrosa de Ney Matogrosso, como tema da novela “Pecado Rasgado”, da TV Globo, em 1978. Tempos de diástole. Anos mais tarde, voltei a tropeçar nela. Curiosamente, a máxima aparecia em nota de rodapé de “Raízes do Brasil” (1936), obra-prima do historiador paulista (e pai de Chico) Sérgio Buarque de Holanda:
“Corria na Europa, durante o século 17, a crença de que aquém da linha do Equador não existe nenhum pecado: Ultra aequinoxialem non peccari. Barlaeus, que menciona o ditado, comenta-o, dizendo: ‘Como se a linha que divide o mundo em dois hemisférios também separasse a virtude do vício’”.
(...)
Mas o que despertou o meu interesse pela máxima seiscentista não foi a mera paixão de antiquário - a curiosidade ociosa que impele o historiador de ideias ao encalço, por vezes febril, de uma genealogia recôndita¹. Foi a súbita percepção do uso diametralmente oposto que pai e filho - historiador e poeta - fizeram dela.
Aos olhos de Sérgio Buarque, a máxima tem conotação fortemente negativa. Ela reflete a realidade amarga do ambiente de desregramento, permissividade e egoísmo anárquico - os “desmandos da luxúria e da cobiça” de que fala Paulo Prado em “Retrato do Brasil” (1928) - criado pela aventura colonial europeia nos trópicos.
(...)
Na poética de Chico Buarque, porém, o sinal se inverte. A ausência da noção de pecado não reflete mais a nossa incapacidade secular de criar uma ética cívica e um Estado moderno - de estabelecer regras impessoais que tornem a nossa convivência menos violenta, iníqua² e precária-, mas passa a ser vista como a senha da realização terrena vedada ao puritano -a busca do prazer sem peias3³ e sem culpa no plano da afetividade pessoal.
Onde o historiador lamenta, o compositor festeja. A canção de Chico e Guerra nos convida a desfrutar o instante -”ubi bene, ibi patria” (“onde se está bem, aí é a pátria”) - e faz a celebração dionisíaca do excesso e da libidinagem.
(Eduardo Giannetti, economista, professor, Folha de S.Paulo, 04 de março de 1999)
¹recôndita: escondida, oculta.
²iníqua: Perversa, malévola; extremamente injusta.
³peias: embaraços, impedimentos, estorvos, empecilhos.
Em ambas as estrofes do texto I, a letra de música destaca um recurso poético que explora: