“Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:
- Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.
O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:
- Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.
O chefe não compreendeu:
- Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?
A emoção impediu qualquer resposta.
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.
joão transformou-se num arquivo de metal.”
GIUDICE, Victor. O arquivo in: Setecontos setencantos. São Paulo: FTD, 1986. V. 2
Quando emprega a forma desassalariado, o narrador recorre a uma derivação peculiar, a fim de marcar estilística e expressivamente o texto, por meio da qual ele acrescenta um prefixo a uma palavra que já contém esse elemento estrutural. Processo inteiramente idêntico verifica-se na palavra destacada na seguinte frase: