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As bolas de gude surgiram, em 2000, na fachada manchada de vazamentos de água e rabiscada por pichadores de um bar cujo nome não aparece em nenhuma placa –um detalhe que nunca preocupou Rosinei Iara Custódio, sua proprietária –, no número 220 da rua Belmiro Braga, na esquina com a Inácio Pereira da Rocha, a uma quadra do cemitério São Paulo, na Vila Madalena.
Na frente do bar, cruzando a rua, amontoavam-se todos os dias entulhos e sacos de lixo trazidos dos restaurantes das redondezas, abertos por mendigos e cachorros. Um terreno público abandonado, de 500 m², coberto de mato, servia de moradia a famílias de sem-teto e de esconderijo para marginais e traficantes. Construído sobre um córrego, saía dali um beco, usado como banheiro de homens e animais, cujas fezes se confundiam com resquícios de drogas. Carreteiros faziam da Belmiro Braga estacionamento e dormitório. Na frente do terreno, grudado a uma fábrica clandestina de roupas, um sobrado se dividia em minúsculas salas, com colchões no chão, separadas por finas paredes de gesso, para prostitutas receberem os clientes.
No verão, as chuvas fortes limpavam a sujeira, mas à custa de enchentes que convertiam todo o entorno, pelo menos duas vezes por ano, num rio; uma criança morreu afogada quando brincava em seu próprio quarto. Entupidas de lixo, as bocas-de-lobo impediam a vazão das águas e ajudavam as enchentes. Alguns moradores instalavam comportas de aço na frente de suas casas para tentar se proteger, o que nem sempre funcionava. Como adicionavam-se, às comportas, muros e grades contra assaltantes, algumas das casas pareciam fortalezas toscas.
Destoando desse cenário, dezenas de bolas de gude misturadas a pedacinhos de espelho compunham mandalas amarelas sobre o fundo azul brilhante que passou a cobrir as paredes do bar. As bolas de gude, tão cobiçadas pelas crianças e tão fáceis de serem arrancadas, sobrevivem até hoje; só quatro desapareceram, numa intrigante capacidade de resistência.
DIMENSTEIN, Gilberto. O mistério das bolas de gude –Histórias de humanos quase invisíveis. Campinas, SP: Papirus, 2006, p. 11 e 12.
A respeito do texto, identifique a alternativa correta. O autor, Gilberto Dimenstein: