Hou da barca!
Diabo – Quem vem aí? Santo sapateiro honrado, como vens tão carregado?
Sapateiro – Mandaram-me vir assi... Mas para onde é a viagem?
Diabo – Para a terra dos danados.
Sapateiro – E os que morrem confessados onde têm sua passagem?
Diabo – Não cures de mais linguagem! que esta é tua barca, esta!
Sapateiro – Renegaria eu da festa e da barca e da barcagem!
Como poderá isso ser, confessado e comungado?
Diabo – Tu morreste excomungado,
não no quiseste dizer.
Esperavas de viver;
calaste dez mil enganos,
tu roubaste bem trinta anos
o povo com teu mister.
Embarca, pobre de ti, que há já muito que te espero!
Sapateiro – Pois digo-te que não quero!
Diabo – Que te pese, hás de ir, si, si!
(Gil Vicente. Auto da Barca do Inferno. Adaptado.)
1 batel: pequena embarcação.
O texto transcrito de Gil Vicente assume caráter