CAPÍTULO XCVIII
Suprimido
(...). De noite fui ao Teatro de São Pedro; representava-se uma grande peça, em que a Estela¹ arrancava lágrimas. Entro; corro os olhos pelos camarotes; vejo em um deles Damasceno e a família. Trajava a filha com outra elegância e certo apuro, cousa difícil de explicar, porque o pai ganhava apenas o necessário para endividar-se; e daí, talvez fosse por isso mesmo.
No intervalo fui visitá-los. O Damasceno recebeu-me com muitas palavras, a mulher com muitos sorrisos. Quanto a Nhã-loló, não tirou mais os olhos de mim. Parecia-me agora mais bonita que no dia do jantar. Achei-lhe certa suavidade etérea casada ao polido das formas terrenas: — expressão vaga, e condigna de um capítulo em que tudo há de ser vago. Realmente, não sei como lhes diga que não me senti mal, ao pé da moça, trajando garridamente um vestido fino, um vestido que me dava cócegas de Tartufo² . Ao contemplá-lo, cobrindo casta e redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta sutil, a saber, que a natureza previu a vestidura humana, condição necessária ao desenvolvimento da nossa espécie. A nudez habitual, dada a multiplicação das obras e dos cuidados do indivíduo, tenderia a embotar os sentidos e a retardar os sexos, ao passo que o vestuário, negaceando a natureza, aguça e atrai as vontades, ativa-as, reprodu-las, e conseguintemente faz andar a civilização. Abençoado uso que nos deu Otelo³ e os paquetes transatlânticos!
Estou com vontade de suprimir este capítulo. O declive é perigoso. Mas enfim eu escrevo as minhas memórias e não as tuas, leitor pacato. Ao pé da graciosa donzela, parecia-me tomado de uma sensação dupla e indefinível. Ela exprimia inteiramente a dualidade de Pascal⁴, l’ange et la bête⁵, com a diferença que o jansenista⁶ não admitia a simultaneidade das duas naturezas, ao passo que elas aí estavam bem juntinhas, — l’ange, que dizia algumas coisas do céu, — e la bête, que... Não; decididamente suprimo este capítulo.
Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas.
Glossário
¹Estela Sezefreda: atriz famosa da época.
²Tartufo: personagem da comédia homônima, de Molière. Homem maduro, Tartufo tenta seduzir a jovem filha do homem, em cuja casa se hospeda. Seu nome tornou-se sinônimo de indivíduo hipócrita, dissimulado, falso beato, enganador.
³Otelo: tragédia de Shakespeare, que também serviu de base a óperas homônimas famosas.
⁴Pascal: Blaise Pascal, célebre pensador francês do século XVII.
⁵“l'ange et la bête": o anjo e a fera.
⁶Jansenista: relativo ao Jansenismo, doutrina filosófico-religiosa marcada pelo rigor moral, pelo dogmatismo e pelo caráter disciplinador.
Serve de exemplo para essa figura de sintaxe a seguinte frase do texto: