Questão
Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF
2020
Fase Única
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Discursiva
O andar de cima

(Raphael Gomes)

Seu Agenor é um sujeito aposentado, sua única ocupação é construir um novo andar para sua casa. Na casa moram apenas ele e a esposa, não precisam de outro andar. Mas Agenor insiste, afinal eles têm filhos e netos que podem muito bem precisar do novo andar um dia.

Os amigos do seu Agenor já morreram quase todos, ou então estão muito longe, ou então muito perto porém já não mantêm contato. Como não tem mais amigos, seu Agenor faz dos pedreiros seus amigos temporários, pagando-lhes às vezes por dia de serviço às vezes por empreitada.

Agenor tem esperança de que os filhos venham morar com ele agora que está velho. Mas eles não têm a mesma intenção, e mal o visitam. Os netos não gostam de seu Agenor, os mais novos nem mesmo o conhecem.

Ele continua adicionando novos andares à sua casa, já está no terceiro novo andar que constrói e está preocupado porque as coisas vão mal. Não que ele tenha pressa, seus projetos, complicados, cheios de idas e vindas, são sempre de execução demorada, mas o hábito impõe que ele se preocupe, é seu dever.

No fim do mês seu Agenor decidiu construir uma grande churrasqueira no último andar. Tudo bem, eles não fazem churrasco há anos, mas quando houver ocasião a churrasqueira estará pronta, enorme, e caberá quanta carne seja preciso para alimentar todos os filhos e netos, e amigos, de longe e de perto.

Os planos de Agenor agora se concentram em fechar o terraço para que a família fique confortável e privativa em suas festas. É claro que eles nunca fazem festas, mas sempre pode surgir uma oportunidade. O filho mais velho diz que o telhado vai cobrir a churrasqueira e a fumaça vai encher o terraço. Mas seu Agenor já teve a ideia de construir uma chaminé colossal, que jogará para fora a fumaça e as cinzas.

Seu Agenor morreu. Seus filhos e netos e todo o resto da família se reuniram no último andar da casa para velar o corpo. O velório virou a noite toda. Ao amanhecer os parentes já estavam cansados e desanimados. Então alguém inventou de pedir cerveja, para homenagear o velho, e junto com a cerveja pediram carne.

O churrasco já durava quatro horas quando acabou o carvão. Aí algum amigo, ninguém sabe se de longe ou de perto, sugeriu de jogarem o caixão de seu Agenor na churrasqueira. Mas claro que esqueceram de tirar Agenor de dentro. E ele queimou até o fim do dia soltando para o alto sua fumaça e suas cinzas, e a festa corria animada entre os parentes e amigos.

GOMES, Raphael. O animal de estimação e outros contos. São Paulo: Giostri, 2016.

Releia as duas sequências a seguir, extraídas do conto do escritor juiz-forano Raphael Gomes:

1. No fim do mês seu Agenor decidiu construir uma grande churrasqueira no último andar. Tudo bem, eles não fazem churrasco há anos, mas quando houver ocasião a churrasqueira estará pronta, enorme, e caberá quanta carne seja preciso para alimentar todos os filhos e netos, e amigos, de longe e de perto.

2. Os planos de Agenor agora se concentram em fechar o terraço para que a família fique confortável e privativa em suas festas. É claro que eles nunca fazem festas, mas sempre pode surgir uma oportunidade.

As sequências destacadas permitem atribuir ao narrador do conto “O andar de cima” a qualidade de onisciente. Justifique a afirmativa.