Questão
Faculdade São Leopoldo Mandic de Araras - SLMANDIC
2017
Fase Única
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“A doença é o lado noturno da vida, uma cidadania mais onerosa. Quem nasce tem a dupla cidadania, uma do reino da saúde, outra do reino da enfermidade. Preferimos usar o passaporte da saúde, mas somos obrigados, ao menos por um instante, a nos identificar como cidadãos daquele outro lugar.”

A citação é uma metáfora que a escritora norte-americana (nascida em 1933) Susan Sontag está usando. Doença não é uma coisa metafórica, ela faz questão de sublinhar; mas, acrescenta, é quase impossível residir no reino da enfermidade sem ser afetado pelas metáforas que ali são parte integrante da paisagem. Susan Sontag fala por experiência própria. A doença como metáfora, publicado pela primeira vez sob a forma de artigo em 1978, corresponde a uma experiência pessoal da autora, que, pouco antes, tinha tido uma neoplasia. 

Até mesmo o nome da enfermidade é evitado. As descrições da tuberculose e do câncer falavam, ambas, de um processo capaz de consumir o corpo; e ambas eram descritas como doenças da paixão – paixão reprimida. 

A tuberculose é a doença do eu doente; o câncer é uma doença alienígena, a invasão do corpo por células mutantes, estranhas, poderosas. O termo maligno, nesse contexto, é bem explicável, como é explicável a paranoia que acompanha a palavra.

A metáfora do câncer, conclui Susan Sontag, nasce dos mitos e das fantasias sobre a doença – em outras palavras, do desconhecimento e da ansiedade que provoca. É uma metástase, para usar outra metáfora, de uma ansiedade mais ampla, que diz respeito à sociedade industrial, com todos os seus problemas: a insegurança, a violência, a deterioração do meio ambiente. Problemas que, conclui a autora, certamente terão duração mais longa que a da metáfora propriamente dita.

(SCLIAR, Moacyr. A paixão transformada – História da Medicina na Literatura. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 267-268. Adaptado.) 

Partindo da citação e da paráfrase comentada de um trecho do livro da escritora norte-americana falecida em 2004, o médico e ficcionista brasileiro Moacyr Scliar tematiza o modo como a linguagem figurada é utilizada para se pensar e falar sobre saúde e, principalmente, sobre a falta dela. Para tanto, ele aproveita e amplia o uso desse recurso expressivo em seu próprio texto. Assim, a afirmação que devidamente comenta o texto com base na vinculação entre tratamento temático e emprego de figuras de linguagem é a seguinte:
A
Enquanto Sontag utiliza conceitos e imagens que remetem às ideias de poder e de privilégio econômico, com destaque para o campo semântico da aristocracia, Scliar opta por metáforas bélicas, a fim de salientar o alcance global do risco iminente de sofrer ataques ao organismo.
B
Assim como Sontag escolhe metáforas de turismo e economia para expor sua experiência autobiográfica com a doença, Scliar reforça seu ponto de vista distanciado de perito, recorrendo a vocábulos próprios aos terrenos da linguística e da ficção científica.
C
Tanto Sontag quanto Scliar selecionam expressões metafóricas ligadas ao domínio do mito, com o intuito de sublinhar criticamente a vinculação impositiva entre doença e fantasia que acompanha os discursos explicativos produzidos pelo eu doente.
D
Scliar elege a imagem de metástase como exemplo do estilo metafórico usado por Sontag para denunciar a proliferação paranoica de discursos que vinculam doença e paixão, por ignorarem a ansiedade passional decorrente dos problemas permanentes das sociedades industriais.
E
Sontag e Scliar mobilizam palavras do âmbito da sociologia e da geografia política, em torno do campo semântico de território, para se referir a uma condição de debilidade física que, embora concreta, se reveste de significados metafóricos nos discursos sobre ela.