E era, ainda assim, com essas esmolas de Pombinha, que na casa de Piedade não faltava de todo o pão, porque já ninguém confiava roupa [para lavar] à desgraçada, e nem ela podia dar conta de qualquer trabalho. Pobre mulher! chegara ao extremo dos extremos. Coitada! já não causava dó, causava repugnância e nojo. (...) O seu quarto era o mais imundo e o pior de toda a estalagem; homens malvados abusavam dela, muitos de uma vez, aproveitando-se da quase completa inconsciência da infeliz. (...) E a mísera [depois de despejada do cortiço São Romão], sem chorar, foi refugiar-se, junto com a filha, no “Cabeça-de-Gato” que, à proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto, mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro tipo da estalagem fluminense, a legítima, a legendária; aquela em que há um samba e um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os assassinos; viveiro de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma lama; paraíso de vermes, brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão.
Aluísio Azevedo. O cortiço. São Paulo: Ática, 1997, p.127.
CAPÍTULO XVII
Os vermes
“Ele fere e cura!” Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles.
— Meu senhor — respondeu-me um longo verme gordo —, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.
Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído.
Machado de Assis. Dom Casmurro. In: Machado de Assis: obra completa em quatro volumes. Organização Aluizio Leite et al. V.1. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, pp. 922 - 923.
A leitura comparativa dos trechos precedentes permite afirmar que os romances O Cortiço e Dom Casmurro